Em
aproximadamente três décadas de trabalho, Andrei Tarkovsky explorou as
possibilidades do cinema e da sua linguagem – tanto a do próprio Tarkovsky
quanto a do cinema em si -, deixando um legado marcante não só para essa arte
quanto para a criação artística do século XX como um todo. Ao publicar seu
ensaio-manifesto ‘Naissance d’une nouvelle
avant-garde: la câmera-stylo’, em 1948, Alexandre Astruc previu que “o
diretor/autor escreverá com a câmera como um escritor escreve com sua caneta”.
Naquele momento era impossível para Astruc ter tido contato com Tarkovsky ou
com vários outros auteurs que
surgiram a partir daí – o que torna sua “previsão” ainda mais impressionante -,
mas com certeza Tarkovsky conheceu a teoria de Astruc. O diretor russo acreditava
fielmente no conceito (segundo ele, “[...] o cinema, como qualquer outra arte,
é uma obra de autor”) e fez bem o papel de honrar tal ensaio. Pouquíssimos
nomes - talvez nenhum outro – se aproximaram desse ideal ao “escrever com a
câmera” com tanta maestria, misturando a linguagem cinematográfica com outra
linguagem caríssima à arte e principalmente à literatura: a linguagem poética.
Tarkovsky deixa isso claro quando escreve já no primeiro capítulo de Esculpir O Tempo: “[...] o que me agrada
extraordinariamente no cinema são as articulações poéticas, a lógica da poesia.
Parecem-me perfeitamente adequadas ao potencial do cinema enquanto a mais
verdadeira e poética das formas de arte”.
Quando me refiro a Andrei Tarkovsky
como poeta, não faço uso do sentido tradicional do termo. Para deixar a idéia
da poesia de Andrei clara, posso parafraseá-lo: “Quando falo em poesia, não
penso nela como gênero. A poesia é uma consciência do mundo, uma forma
específica de relacionamento com a realidade. Assim, a poesia torna-se uma
filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida”. O próprio diretor se
reconhecia mais como poeta do que como cineasta. O pai de Andrei, Arseni
Tarkovsky, sim, era um poeta “tradicional”, das letras - foi de fundamental
importância para a educação estética de Andrei ter tido Arseni como pai. Andrei
criou poesia cinematográfica. Pretendo, ao longo deste ensaio, deixar claro o
porquê de eu ter esta idéia. Antes de qualquer outra coisa, acho importante
frisar que Tarkovsky não gostava do que foi chamado de “cinema poético”. Nele,
segundo o russo, “tudo é deliberadamente incompreensível, e o diretor precisa
elaborar explicações para o que fez”. Também preocupava Tarkovsky o fato desse
tipo de cinema tentar se afastar do efetivo e do concreto, pois isso levava a
“símbolos e alegorias e outras coisas do gênero – isto é, a coisas que nada têm
a ver com as imagens que lhe são inerentes”.
Uma das maneiras mais evidentes de
provar a ‘autoria’ dos filmes de Tarkovsky é o fato de que, de certo modo, ele
praticamente criou um novo gênero ao fazer filmes que não tinham um gênero
definido – pelo menos essa era sua intenção. De fato, alguém que tente
classificar os filmes de Andrei por gênero terá uma tarefa difícil. Podem-se
identificar elementos de drama, ficção científica, suspense e até documentário.
Andrei acreditava que “A verdadeira imagem cinematográfica edifica-se sobre a
destruição do gênero, sobre o conflito com ele. E, neste caso, os ideais que o
artista aparentemente busca expressar não se prestam, sem dúvida alguma, às
restrições dos parâmetros de um gênero”. Seguindo tal crença, ele se aproximou
de alguns de seus mestres como Bergman, Buñuel, Kurosawa, Bresson e Fellini,
que “não são iguais senão a si próprios” e, portanto, estão fora (ou acima) de
questões de gênero. Um caso emblemático é Solaris.
Em Tempo Di Viaggio,
Tarkovsky admite que não gosta tanto do filme porque não conseguiu escapar das
convenções de ficção científica – materializada nos foguetes e estações
especiais que foi preciso construir -, e acha que elas ficaram tão evidentes
que acabaram se tornando “um fator de alienação”. Andrei considera que
conseguiu superar o gênero de ficção científica – ele parece contente ao falar
isso - em Stalker, apesar da situação
ou estória básica claramente pertencer ao gênero.
Entre as marcas principais desse tal
‘gênero Tarkovsky’ está, sem dúvida, o ritmo. Ver um filme de Andrei Tarkovsky
pode ser um exercício de paciência, até por questão de duração. Eles são
longos, alguns chegando perto de ter duas horas e meia, três horas. Ainda
assim, não são longos demais, e sua
duração não chega a prejudicar sua qualidade – se O Espelho tivesse mais meia hora de duração, por exemplo, eu
ficaria bastante feliz. Talvez por intenção do próprio Tarkovsky, talvez por
simples falta de costume, pode-se ter a impressão de que nos primeiros dez ou quinze
minutos pouco ou quase nada de realmente relevante – ou que pareça ser
relevante - acontece. É provável que uma pessoa desavisada ou mais impaciente,
esperando uma noção do que virá a seguir ou alguma coisa que já lhe chame a
atenção, fique frustrada e até abandone o filme. Outros aprendem e aceitam que
nos filmes de Tarkovsky, principalmente os que vieram depois de Andrei Rublev, as coisas se movem e
acontecem num ritmo particular, e “se entregam”. A imersão é tamanha que muitas
vezes se perde a noção do tempo “real”, como eu mesmo já pude notar. Quando vi
pela segunda vez O Espelho, por
exemplo, só duas semanas depois de tê-lo visto pela primeira vez, só fui
perceber que o filme estava perto do final quando lhe faltavam cinco minutos.
Ou quando vi Nostalgia e Stalker pelo computador, em arquivos
separados em duas partes, e tomava um susto ao fim da primeira parte,
percebendo que mais de uma hora havia se passado.
A percepção desse ritmo se dá de
formas diferentes. Ele está, em primeiro lugar, na duração das tomadas.
Tarkovsky gostava de usar tomadas longas, que podiam chegar a até seis minutos.
A câmera dos filmes de Tarkovsky insiste em acompanhar seus personagens e se
mexe bastante, geralmente em movimentos lentos e elegantes (com o auxílio de
trilhos), sem ângulos inusitados ou efeitos majestosos. Um bom exemplo é O Espelho, que tem cerca de duzentas
tomadas, enquanto um filme de duração parecida costuma ter cerca de quinhentas.
Segundo definição do próprio Andrei, “o tempo específico que flui através das
tomadas cria o ritmo do filme, e o ritmo não é determinado pela extensão das
peças montadas, mas, sim, pela pressão do tempo [definida como “a consistência
do tempo que corre através do plano, sua intensidade ou densidade”] que passa
através delas”. Todo esse cuidado como ritmo dá aos filmes do diretor uma
atmosfera característica, na qual se percebe o tempo fluir com naturalidade e
sem pressa, fator que chega a tornar as imagens cinematográficas mais próximas
da realidade e de “dizer a verdade”.
Outro fator característico dos
longas de Tarkovsky, e que volta à idéia da câmera que insiste em acompanhar os
personagens, é o modo como o diretor lida com os sonhos. Andrei odiava ver em
filmes cenas de sonho que se utilizavam de truques, ilusionismo, efeitos, e, no
geral, mise en scènes já tidas como
clichês que faziam os sonhos parecerem falsos. O mais perto que ele chegou
disso foi utilizar, em A Infância de Ivan, um fundo – preto e branco - de
cores negativas numa das cenas de sonho. O russo acreditava que o cinema era a
mais realista das artes, e estende essa idéia aos sonhos, dando a eles um
tratamento preciso e respeitoso, sempre tendo em consideração a chamada lógica
do sonho, na qual “combinações insólitas e inesperadas de elementos
inteiramente reais e situações de conflito entre eles”. Tarkovsky usa
sequências de sonhos em todos os seus filmes, e, graças a todo esse cuidado
citado, as torna dotadas de beleza e singularidade incríveis.
Mas tudo isso não quer dizer que
Tarkovsky retrata o sonho e a realidade da mesma forma, esteticamente falando.
Nas cenas de sonho, o tratamento da cor e do som é diferente, ainda que isso
não se configure como um mero ‘truque’. Visualmente falando, o efeito mais
comum é o uso de filtros de cores – usado a partir de Solaris, já que A Infância de
Ivan e Andrei Rublev são filmes
em preto e branco, afinal -, que variam de filme pra filme e até diferem dentro
do mesmo filme. Em Nostalgia, por
exemplo, os sonhos variam entre um filtro roxo pálido e outro sépia, enquanto
as memórias estão tons de cinza. Em O Sacrifício
são usados filtros cinza para as cenas de sonhos e filtros de cor roxa ou sépia
em cenas que são claramente “reais”. Em O Espelho,
há filtros com tons de roxo, cinza, sépia e até amarelo usados numa infinidade
de cenas de memória e sonho. Em Stalker,
várias tomadas de cenas “reais” têm uma coloração que realça os contrastes com
uma mistura de marrom e cinza, e às vezes o filme chega a beirar o preto e
branco. Solaris alterna entre filtros
preto e branco, roxo e azul.
Mesmo assim, ao fazer isso Tarkovsky não tinha a intenção de tornar a
distinção visual entre sonho e realidade mais clara, de maneira que realidade =
cor normal e sonho = cor em
filtro. Também não era sua intenção associar a atmosfera de
uma cena e a emoção que ela pode provocar a emoções ligadas às cores, como
tornar mais melancólica ou triste uma cena ao usar um filtro em um tom de azul,
cor comumente ligada a tais sentimentos. Não, isso seria simples demais. Na
verdade, Andrei tentava modificar o impacto que a cor exercia sobre o público e
a reação emocional que causava nele em diferentes cenas, e justificou essa
atitude em Esculpir
O Tempo,
dizendo: “Talvez a maneira de neutralizar o efeito produzido pelas cores seja
alternar sequências coloridas e monocromáticas, de tal maneira que a impressão
criada pelo espectro completo seja espaçada, diminuída”. De certo modo, além de
dar a cada tomada o efeito desejado, Tarkovsky também quebra com certas
convenções que o espectador pode ter. Ao mostrar tanto sonho quanto realidade
através de filtros de cores, o diretor faz seu espectador se entregar a tal
ação e ter uma experiência mais sensorial e menos racional com o filme. Também
não se deve deixar de notar a importância dada ao escuro e ao preto nos filmes
de Andrei, mais em uns do que outros, e sua capacidade de provocar emoções como
qualquer outra cor. Nostalgia talvez
seja o mais escuro dos filmes de Tarkovsky, servindo de espelho para os
sentimentos do personagem principal. Em muitas cenas, ele chega a ser tão
escuro que só se pode enxergar os contornos da cabeça ou dos cabelos dos
personagens (por ‘personagens’ eu quero dizer ‘Domiziana Giordano’). Outro uso
de beleza incontestável do escuro é O
Sacrifício. Nele, Tarkovsky trabalhou com o diretor de fotografia Sven
Nykvist, colaborador freqüente de Ingmar Bergman, e o resultado de seu trabalho
com a luz é que, em alguns momentos, o filme chega a ter efeito semelhante a
uma pintura barroca.
Como foi colocado, o som também é
usado para dar uma estética diferente aos sonhos nos filmes de Tarkovsky. Não
só música propriamente dita, mas efeitos sonoros também marcam presença até
mesmo quando não há diálogos. Podem-se ouvir desde sons da natureza como
latidos de cachorros ou o pingar de gotas – que não aparecem na imagem – até
música eletrônica – bem diferente dos ritmos dançantes gerados por computador
ou o que quer que se dê por música eletrônica hoje em dia -, sempre com a
intenção de intensificar a experiência do espectador. Um bom exemplo está num
dos sonhos de Nostalgia, quando vemos
um cachorro atravessar correndo um pequeno lago ou riacho numa distância que
parece ser de no mínimo vinte metros, mas podemos ouvir o barulho das batidas
na água como se aquilo ocorresse a poucos passos de distância. Outro exemplo são
as cenas de vento em O
Espelho. Nelas, a imagem do vento por
si só já traz uma grande beleza, mas o som do vento batendo nas folhas e
carregando a poeira dão a elas uma intensidade sem par. O método também pode
ser contrário. Num dos sonhos de O
Sacrifício, o protagonista sonha com a guerra e vê centenas de pessoas
correndo por ruas destruídas. As imagens sugerem um completo caos, mas depois
de alguns segundos nos quais ouvimos passos, passa-se a se ouvir ao longe uma
flauta e um canto suave e estranho, além de um curto diálogo. O diretor, mais
uma vez, explica: “Quando os sons do mundo visível refletido na tela são
removidos, ou quando esse mundo é preenchido, em benefício da imagem, com sons
exteriores que não existem literalmente, ou, ainda, se os sons reais são
distorcidos de modo que não mais correspondam à imagem, o filme adquire
ressonância”. Talvez a mais fiel representação dessa idéia seja Nostalgia, em que tanto a falta de som
quanto a intensificação do som são usadas de forma primorosa. Em Nostalgia, mais do que em qualquer outro
filme, Tarkovsky se utiliza –e muito – do silêncio, que pontua a tristeza e as
reflexões do personagem principal. De certo modo, as próprias pausas entre as
falas de diferentes personagens durante diálogos parecem ser mais longas e –
talvez por isso mesmo – reais do que em quaisquer outros filmes.
Quanto ao uso da música em si,
Tarkovsky tem uma visão quase oposta à de diretores como Kubrick e Hitchcock,
que davam grande importância à trilha sonora e a utilizavam em parte
considerável de seus filmes. Arseni considerava a música importante e valiosa
para seus filmes, mas a achava aceitável quando usada como refrão, ou para
conduzir as emoções do espectador em determinada direção, apenas. Ele cogitou
até fazer filmes sem música, e chegou perto disso em Nostalgia e Stalker. De
fato, o som que mais se ouve nesses filmes é o que o russo chamou de “voz da
natureza”.
Fica claro, tanto pelos exemplos de
imagens quanto pelos de sons, que a natureza tem presença constante nos filmes
do diretor. Ela e sua vida estão nos cachorros, presentes em quase todos os
filmes, e nas algas que balançam em movimento quase hipnotizante. Nos riachos e
pequenos corpos d’água, no som constante das gotas caindo. No fogo, o fogo que
queima casas e até personagens, o fogo das velas. No vento, tão forte e belo em O Espelho. Apesar
da opinião de muitos, Tarkovsky não desejava colocar a natureza e seus
elementos como símbolos de alguma outra coisa. Era sua intenção apenas
representar a natureza “com amor”, precisão e fidelidade, por acreditar que
isso tudo faz parte da “verdade das nossas vidas”. Com ou sem porquês, a
atenção que Tarkovsky dá à natureza é um dos aspectos mais bonitos de sua
estética.
Muito da autoria e da caracterização
de Tarkovsky como poeta está não só na estética e na sua marca audiovisual, mas
nos próprios roteiros. Como bom auteur,
Andrei gostava de pelo menos trabalhar nos roteiros dos filmes que dirigia, e
chegou a escrever três roteiros originais para O Espelho, Nostalgia e O Sacrifício. Nesses três filmes,
principalmente, se percebe claramente o quanto da sua experiência pessoal
Arseni transferiu para o cinema, apesar de isso ter sido feito com cautela ou
não ter sido totalmente premeditado. Sua relação difícil com a família e pessoas
que amava, sua dor por ter sido afastado da Rússia, a ausência do filho, a
falta de espiritualidade alarmante da civilização ocidental... está tudo ali.
Ao escrever seus roteiros, Tarkovsky pensava por imagens, como faz o poeta
segundo ele próprio, e assim criava imagens, no caso, cinematográficas. Seu
modo de poeta está até como ele via sua profissão. Segundo Tarkovsky, “Ele [o
diretor] passa a ser um artista no momento em que, em sua mente, ou mesmo no
filme, seu sistema particular de imagens começa a adquirir forma – a sua
estrutura pessoal de ideias sobre o mundo exterior – e o público é convidado a
julgá-lo, a compartilhar com o diretor os seus sonhos mais secretos e
preciosos”. Sempre achei que, com certas alterações, essa frase poderia muito
bem ser dita por um poeta, que expressa seus sentimentos mais íntimos através
do seu trabalho.
Tarkovsky se interessava primariamente no homem, e assim criava
personagens que, ao se depararem com situações que pareciam fugir do seu
controle, buscavam forças dentro do seu íntimo e assim se descobriam. E
filosofavam também, e muito, mas só porque seu criador dava a eles valor demais
para que existissem de qualquer outro jeito ou que não se expressassem como
deviam. Também é possível notar como marca da autoria do diretor, cristão
ortodoxo convicto, o constante uso de referências a ícones e estórias
religiosas. Esses símbolos, como quase todos os outros nos filmes de Tarkovsky,
não tentam passar mensagens ocultas ou coisa parecida. Eles apenas estão lá. Só
em O Sacrifício, como admitiu o próprio Tarkovsky,
eles são usados sutilmente para criticar a falta de espiritualidade do homem
moderno, principalmente do ocidental.
Quanto à estrutura narrativa de seus
longas, é difícil classificar Tarkovsky ou fazer um paralelo entre seus filmes
e a literatura, estruturalmente falando. O
Espelho lembra muitas vezes um fluxo de consciência, como se o filme todo
se passasse na cabeça do personagem principal e ele não conseguisse conter o
fluxo de lembranças e sonhos. Ainda dentro desse filme, o discurso de alguns
personagens se assemelha ao monólogo interior em alguns momentos. Em Stalker, por outro lado, há
intencionalmente o mínimo de lapsos de tempo possíveis. Tarkovsky queria “[...]
demonstrar como o cinema, com sua continuidade, é capaz de observar a vida sem
interferir nela de forma grosseira ou evidente”, por acreditar que está nisso a
verdadeira essência poética do cinema. Com isso, o filme se assemelha,
principalmente, à prosa poética. Talvez todos os filmes do diretor se aproximem
mais da prosa poética, de um modo geral, com uso recorrente de monólogos
interiores e passagens bastante descritivas visualmente. O modo como o espaço é
mostrado, aos poucos, também lembra mais a literatura do que o cinema
convencional, no qual os espaços e cenários são mostrados de forma mais aberta.
Um exemplo digno de ser lembrado é uma das cenas de O Espelho na qual o personagem principal e sua ex-mulher conversam
dentro do apartamento. Por alguns minutos, ela dá voltas e voltas pelo cenário,
e podemos ver de relance as janelas. Podemos ter facilmente a impressão de que
eles estão, no mínimo, no segundo andar. Porém, quando a câmera se foca no lado
de fora, onde Inayat aparece contemplando um fogo no pátio, se tem a certeza de
que o apartamento fica, na verdade, no térreo.
A poesia também está presente nos filmes de Tarkovsky na sua forma
escrita, claro. São declamados vários poemas do seu próprio pai, Arseni, e de
Fyodor Tyuchev. Cartas também são lidas, de Puchkin para Chaadayev, e de
Sosnovsky para Nikolayevich. Essas leituras se dão predominantemente em sob a
estrutura de monólogos interiores, mas há também casos de diálogo comum de
prosa, como quando Inayat lê a carta de Puchkin.
Com certeza, muito mais poderia e
pode ainda ser dito sobre o trabalho de Andrei Tarkovsky. A única coisa ruim
sobre ter que escrever esse ensaio foi a falta de organização do meu próprio
tempo, que só me deixou ver O Sacrifício,
O Espelho e Solaris mais de uma vez. Os filmes desse diretor, como poucos
outros, conseguem recompensar o espectador que se dispõe a vê-los de novo,
propiciando a descoberta de detalhes que ele não tinha percebido, emoções que
ele não tinha sentido, ou até mesmo interpretações e conclusões opostas às da
primeira experiência. Como disse o próprio Tarkovsky, “[...] sempre há mais num
filme do que aquilo que se vê – pelo menos, se for um verdadeiro filme. Sempre
descobriremos nele mais reflexões e idéias do que as que ali foram
conscientemente colocadas pelo autor. Assim como a vida, em constante movimento
e mutação, permite que todos sintam e interpretem cada momento a seu próprio
modo, o mesmo acontece com um filme autêntico; ao registrar fielmente na
película o tempo que flui para além dos limites do fotograma, o verdadeiro
filme vive no tempo, se o tempo também estiver vivo nele: este processo de
interação é um fator fundamental do cinema”.
Observação: todas as frases entre
aspas, com exceção da de Astruc no primeiro parágrafo, são de Andrei Tarkovsky,
tiradas de Esculpir O Tempo.
(ensaio escrito para a cadeira 'Cinema e Literatura')