segunda-feira, março 19, 2012

Ela

Ela procura a poesia e sua beleza
Ainda que não saiba defini-la
Ou o que faria se pudesse tocá-la, tendo sua essência por entre os dedos
Uma busca às vezes vã, mas de recompensas infinitas.

Poesia nas coisas pequenas, nos detalhes
Nos fios fora de lugar do cabelo que insiste em se bagunçar,
Na fumaça de um cigarro pós-café se iluminando e desaparecendo no ar
Poesia repousando num piano, num trompete,
Esperando o momento de ser solta no ar, conjurada,
Seu som reverberando nos cantos da alma
Na redescoberta de um sentimento quase esquecido e há muito aguardado
Num sorriso que se conquista, ainda que não se mereça
Poesia duma tristeza que é conhecida, mas não negada
Numa felicidade que de tão palpável e absoluta não parece real
No beijo longamente aguardado
No observar dos contornos dum vestido
Na beleza da inegável imperfeição de um corpo nu
A beleza crua e verdadeira das linhas duras e tortas
Poesia na beleza escondida dos olhos, na beleza que é descoberta, beleza achada
Poesia no azul de uma segunda tempestuosa
No surrealismo dos sonhos, sua supremacia e intimidade
No se sentir livre - não no ser livre -, a poesia do fluxo
A poesia das coisas não-ditas, dos silêncios
A poesia que vale a pena ser escrita, descrita, vivida.

segunda-feira, março 05, 2012

Análise: Vertigem, som e cor

                 ‘Vertigo’ (infelizmente traduzido no Brasil pra ‘Um Corpo Que Cai’ em vez de simplesmente ‘Vertigem’), de 1958, é uma obra-prima de Alfred Hitchcock que não foi sucesso instantâneo de público e crítica como outros filmes do diretor, mas que a partir da década de 1960 foi ganhando o respeito que merece e hoje é tido como um dos melhores – senão o melhor – filmes de Hitchcock.


                O roteiro, que Hitchcock buscou aperfeiçoar por anos, é uma adaptação do romance D’entre Les Morts, de Boileau-Narcejac. A versão final foi escrita por Alec Coppel e Samuel Taylor. A trilha sonora foi escrita pelo lendário compositor alemão Bernard Herrmann, em sua quarta colaboração com Hitchcock. Hitchcock sabia combinar som e imagem para obter a emoção e o efeito desejado como poucos, e a trilha sonora de Herrmann é uma das melhores de sua carreira e essencial para o filme.
                Vi o filme pela primeira vez em abril ou maio de 2010, e ele desde já me marcou, ficando entre os meus favoritos. Tive vontade de escrever uma análise sobre ele depois de assistir o ótimo documentário Um Toque de Mestre: A Assinatura de Hitchcock (The Master’s Touch: Hitchcock’s Signature Style).


                Vertigo já começa com um tom estranho. A cena de abertura, que dura quase 3 minutos, planejada pelo lendário designer gráfico Saul Bass – que também criou pôster(s) para o filme -, dá de cara ao espectador uma sensação de que alguma coisa ruim está prestes a acontecer. A primeira coisa aparecer é o rosto de Kim Novak, num super close do rosto de Kim Novak em que a lente parece estar a centímetros da atriz. A câmera se move lentamente da boca, aos olhos, ao olho direito, revelando os nomes principais do filme (James Stewart, Kim Novak, Alfred Hitchcock). Quando nos aproximamos do olho direito, a tela, que já tinha uma coloração alterada (diminui-se o nível de cores), ganha um filtro vermelho. E de repente sai o nome VERTIGO do olho de Novak, e ele fica cada vez mais próximo, movimento esse que é acompanhado pela música. Novak também acompanha, abrindo o olho o máximo possível. De repente aparece um redemoinho dentro do olho, desenho/tema/motif que será constante no filme. O redemoinho fica cada vez mais próximo, até que toma conta da tela e é substituído por outros redemoinhos, com os créditos revelando nomes “secundários” do filme. Depois de uns segundos os redemoinhos voltam para o olho de Novak (de novo em close). Agora o texto que sai do olho e fica cada vez maior é ‘DIRECTED BY ALFRED HITCHCOCK’. E assim se encerram os créditos iniciais.


                Imediatamente a música muda, e o ritmo dela agora é bem mais acelerado. O filme começa com uma cena de perseguição noturna pelos telhados de São Francisco, em um close de uma escada. Logo é mostrada uma mão (do criminoso) subindo a escada, a imagem abre, e são mostrados o criminoso, um policial, e o detetive John Ferguson, ou Scottie, para os íntimos, interpretado por James Stewart, em seu quarto e último filme com Hitchcock, que depois passou a criticar/desaprovar a escolha dele como protagonista por ser 26 anos mais velho que Kim Novak e “já velho demais para atrair o público”. É difícil dizer se Stewart era velho demais para atrair o público, mas na cena da perseguição em particular ele parece velho, e não consegue passar de um telhado para o outro, e cairia se não tivesse se segurado no... parapeito? Enfim... ele fica preso, e seu parceiro deixa o bandido escapar e volta para tentar ajudá-lo. Desesperado, Scottie olha pra baixo, e é revelado sua acrofobia, que até então era latente. A partir deste momento a câmera assume o ponto de vista de um personagem, no caso, Scottie, marca registrada de Hitchcock. O diretor consegue isso intercalando closes de Scottie, desesperado, e planos da queda que o espera, como se a câmera fosse os olhos dele. Para acentuar o efeito de vertigem, foi criado pelo cameraman Irmin Roberts o que depois foi apelidado de “vertigo zoom” ou “contra zoom”, ou seja, puxar a câmera para trás através de um trilho enquanto se acentua o zoom da câmera. Hitchcock tinha planos de obter algo parecido desde as filmagens de Rebecca, de 1940, mas só foi conseguir o efeito em Vertigo. A combinação do vertigo zoom com os closes de um Scottie amedrontado e uma música de fundo tensa dá ao espectador uma sensação o mais próxima da sensação do protagonista possível. O policial também é mostrado através dos olhos de Scottie, de baixo para cima, estendendo a mão para tentar salvar o colega. Scottie, tomado pelo pânico, fica congelado, e o policial escorrega e cai para a morte. Scottie olha o policial caído (ou a câmera olha o colega caído) ainda em estado de choque, mas por algum milagre consegue se salvar.

              
  Depois do acidente, por uns minutos muda completamente de ambiente/clima. De uma cena escura nos telhados de São Francisco, Scottie agora aparece no apartamento bem-iluminado e florido de sua velha amiga e Midge (interpretada por Barbara Bel Geddes). Os dois, impecavelmente vestidos, conversam amigavelmente, e revelam que Scottie desistirá da carreira policial por causa da acrofobia. Também é comentado que Midge e Scottie foram noivos por três anos, e que foi Midge que terminou o noivado. Porém, com os dois ainda solteiros, e julgando pelas respostas e olhares – ressaltados por closes – de Midge, ela parece nutrir um amor platônico por Scottie. Quando Scottie diz “Oh, não seja tão maternal, Midge”, por exemplo, ela olha pra ele de um jeito diferente (em close), meio que ofendida e meio que surpresa por ele perceber isso, mas de fato Midge chega a ser uma figura maternal para Scottie. Midge também revela que, segundo um médico a quem ela consultou, somente outro choque emocional forte poderia curar Scottie da acrofobia, e talvez nem isso. De brincadeira, Scottie tenta curar a acrofobia se acostumando a alturas aos poucos, e sobe na escada de cozinha de Midge. Mas ele olha pela janela e percebe que está a uma altura considerável do solo, e tem vertigem novamente. A cena só tinha até agora a presença discreta de uma música de Mozart, que foi parada a pedido de Scottie, mas assim que Scottie tem mais um ataque de acrofobia ela aparece de novo, demonstrando musicalmente todo o pânico do protagonista. Midge o acode, voltando à idéia da figura maternal.



(HITCH APARECE ANDANDO COM UMA COISA ESTRANHA NA MÃO, AQUELE DISCRETO)

                Na cena seguinte, Scottie vai ao escritório de Gavin Elster, antigo colega de faculdade que agora administra um negócio bem lucrativo nas docas, graças à herança de sua mulher. Elster revela que ficou sabendo do acidente (e da acrofobia) de Scottie e de ele ter se demitido, e, sabendo que ele era um detetive, pede para ele seguir sua mulher como favor. Scottie recusa inicialmente mas Elster fala de uma estória estranha, sobre ela ser possuída por uma familiar morta (Hitchcock mostra Scottie em close quando Elster lhe fala de uma pessoa morta causando mal à sua mulher, para realçar a incredulidade de Scottie, depois recua a câmera e retorna para um plano com os dois personagens, então intercala closes dos dois quando Scottie recusa o pedido grosseiramente, e volta os dois para o mesmo plano quando Elster o convence). Scottie não acredita de cara, mas se interessa, e aceita encontrá-los num restaurante (Ernie’s) mais tarde.
                A próxima cena se passa no Ernie’s, onde Scottie se senta no balcão para observar Elster e sua mulher (Kim Novak) jantando, e é uma das mais belas do filme. Além disso, demonstra todo o respeito de Hitchcock pelo cinema mudo - a cena não tem diálogos -, onde ele começou. Martin Scorsese, quando entrevistado para os extras do DVD de Vertigo, ressaltou o “uso extraordinário das cores” e a trilha sonora de Bernard Herrmann, que – segundo ele – é feita de círculos, como o motif do redemoinho nos créditos iniciais (mais sobre isso depois). Este foi o sétimo filme de Hitchcock em cores (Technicolor), sendo o primeiro Rope, de 1948. Provavelmente este é o filme com o uso mais significativo delas. Essa cena é especial pelo uso de som, cor e câmera. Primeiro se vê Scottie observando o interior do restaurante – de luxo - procurando pelos dois, num ângulo como que de trás do balcão. A câmera recua, como que assumindo o ponto de vista de Scottie, mas de um jeito diferente, e revela em sua plenitude as paredes vermelhas do restaurante. A câmera se desloca lateralmente até o centro do restaurante, como que à procura do casal. Até que ela “acha” Elster, e se desloca até ele. Vemos sentado com ele uma mulher loira, com um maravilhoso vestido verde e preto que deixa parte de suas costas à mostra. Então ela passa a se aproximar lentamente. Até então o que se ouvia era o tilintar de talheres e o som de várias pessoas conversando ao mesmo tempo, como é normal num restaurante. A partir do momento em que a câmera começa a se mover na direção de Kim Novak, entra a música de Herrmann, numa das variações principais da música que ele compôs para Scottie e Madeleine. Ao contrário da música usada até então, essa é tranqüila, mas marcante, e dá um tom apaixonado à cena. Há um corte para um close de Scottie, ainda observando, e a partir daí a câmera assume os olhos dele, e a edição alterna entre closes do protagonista e a vista, ainda meio que de longe, da mulher de verde. Não sei bem o porquê de o verde ser tão ligado à personagem de Kim Novak, mas ele aparece em outras ocasiões no filme. Talvez por ser a cor oposta ao vermelho, o vermelho da parede do Ernie’s, onde Scottie a viu pela primeira vez, ou o vermelho como que ligado à paixão (o que faria certo sentido) não sei. Madeleine se aproxima lentamente, e à medida que ela chega perto de Scottie, a música também aumenta. Quando ela chega bem perto de Scottie (Elster para pra conversar com um garçom), ele a vê com o canto do olho, de costas, mas ainda assim claramente. Ela para, e a iluminação fica mais forte para realçá-la, enquanto a música chega ao seu ápice. Ela ameaça virar o rosto na direção de Scottie, que vira a cabeça para frente rapidamente, mas ela – supostamente – não o vê (pelo menos não nos olhos), e ao invés disso vê que Elster está indo embora e o acompanha. A iluminação volta ao normal, a música diminui, e a alternância de planos prossegue, mostrando Scottie observando os dois saírem do restaurante, passando por um espelho enorme. 


                Agora vemos Scottie, que aceitou o “emprego”, seguindo Madeleine num carro branco pelas ruas de São Francisco. Ela está num carro verde e usa uma roupa completamente cinza, que foi desenhada/planejada por Hitchcock e Edith Head para dar um visual estranho a ela. A música agora tem uma aura de suspense, apesar de quase não variar de ritmo ao longo da cena. Scottie segue Madeleine pelas ruas e ladeiras de São Francisco, primeiro até um beco onde Madeleine entra por um corredor escuro numa loja de flores. Scottie a observa pela fresta de uma porta, e ela é mostrada através de um espelho (quando não pelos olhos dele), de novo. Depois, ela vai até uma igreja, e de lá entra em um pequeno cemitério. A iluminação dessa cena parece pálida, principalmente nos tons de branco, o que dá um tom meio de assombração pra ela. Esse tipo de iluminação vai ser usado de novo no filme futuramente. Em todas essas cenas, Madeleine sempre acha um momento para observar o nada, como se estivesse querendo ter certeza de que Scottie a segue. A música, que até então se mantinha quieta, em estado de apreensão, aumenta subitamente quando Scottie vê a lápide que Madeleine observava: a de Carlotta Valdes, morta em 1857. Depois ele a segue até um museu, onde Madeleine observa o ‘Retrato de Carlotta’, no qual há uma mulher com buquê e cabelo iguais aos de Madeleine. Zooms e closes mostram a visão de Scottie. Do museu, eles vão até um pequeno hotel. A câmera continua alternando entre closes de Scottie e ângulos como que de dentro do carro. No hotel, a dona faz parecer que Madeleine não tinha ido lá, apesar de Scottie tê-la visto na janela, o que o faz indagar se ele não está imaginando coisas.

                Obcecado pela estória de Carlotta e Madeleine como nos tempos de detetive, Scottie vai atrás de Midge, que o apresenta a Pop Leibel, bibliotecário que lhes conta a estória de Carlotta. Não há música nessa cena, mas lentamente a iluminação da biblioteca vai ficando cada vez mais escura (com tons de azul), enquanto Pop fala da triste saga de Carlotta. Quando Scottie e Midge voltam pra casa, já é de noite. Parece que se passaram duas horas naquela biblioteca. Então Scottie conversa com Gavin Elster, agora já convencido da gravidade do caso. Elster dá ainda mais razões para Scottie acreditar que Carlotta está tomando posse de Madeleine para tentar matá-la, com mais detalhes que comprovam sua teoria.

                E de novo Scottie segue Madeleine, que, depois da visita ao museu, vai à baía de São Francisco, abaixo da ponte. Agora ela veste roxo bem escuro, quase preto (cor do luto), com um longo lenço roxo que lhe dá um contraste estranho. Depois de jogar flores na água, ela se joga – ao mesmo tempo a música aumenta consideravelmente, demonstrando todo o susto de Scottie, que se joga na água para salvá-la. Ele a tira da água e a leva pra casa. Dentro do apartamento de Scottie, a câmera passa lentamente pela cozinha, onde estão penduradas as roupas de Madeleine. Ela dorme na cama, mas assim que o telefone toca Madeleine desperta, e percebe que aquele homem a despiu, deixando ela com uma expressão assustada. Ele oferece a ela uma camisola vermelha. Assim que ela sai do quarto vestida com a camisola, a música lentamente aumenta e volta ao tema entre Scottie e Madeleine. Eles conversam, e assim que Scottie acidentalmente segura a mão dela e eles trocam olhares, o telefone toca. Scottie vai atender (Elster na linha), e enquanto isso Madeleine vai embora. Do lado de fora, Midge observava tudo, e fica triste ao ver Madeleine saindo do apartamento de Scottie. 


                No dia seguinte, Scottie mais uma vez segue Madeleine, e dessa vez ela vai, para sua surpresa, até o apartamento de Scottie. Dessa vez ela veste um casaco/sobretudo branco, com detalhes (longo lenço e luvas) pretos, contrastando com as cores do dia anterior (no qual ela “tentou se matar”). Eles vão a uma floresta, onde Madeleine dá sinais de “possessão”, e depois à praia, onde ela finge tentar se matar, e Scottie obviamente a salva. Eles se beijam, e ela o prende cada vez mais em sua obsessão. Uma variação do tema de amor de Herrmann toca mais alto que nunca, intensificado pelo som das ondas.

                À noite, Scottie volta ao apartamento de Midge, agora vestida de vermelho, e disposta a fazer uma última tentativa ao coração de Scottie. Ela faz uma réplica do Retrato de Carlotta com o seu rosto, mas Scottie não gosta da brincadeira e vai embora. Midge é deixada se lamentando amargamente. Também se faz outro jogo com as duplicatas, presente nas várias vezes em que os personagens são mostrados normalmente e através de um espelho, quando se mostra o quadro de Midge e ela própria ao lado.


                 Madeleine aparece mais uma vez no apartamento de Scottie, novamente vestida de cinza (meio termo entre preto e branco). Scottie a leva para a Missão San Juan Batista, que supostamente aparecia nos sonhos de Madeleine. Scottie tenta em vão “curá-la”, mas apesar de ter conseguido seu amor, ela ainda tem “algo a fazer”. A música varia entre um tema de suspense e um tema de amor, de acordo com o que acontece em cena. E então, assim que Madeleine corre para dentro da Igreja com a torre e Scottie percebe o que ela fará, o som que se ouviu nos momentos de acrofobia de Scottie volta (quando há um close da torre). Scottie tenta em vão subir a escada e alcançá-la, mas a cada vez que ele olha pra baixo fica mais tonto (e há um contra zoom). Scottie para no final, há um grito, e pela janela Scottie vê Madeleine caindo de cima da torre para o telhado da Igreja. Ele a vê estirada sobre os tijolos, morta, e foge. Hitchcock fecha a cena com a câmera num ângulo acima da torre, que mostra Scottie – pequenino – fugindo por um lado enquanto tentam tirar o corpo de Madeleine pelo outro lado.

                Pouco tempo depois, ocorre o julgamento de Scottie, na própria Missão. É concluído que Scottie não foi culpado diretamente pela morte de Madeleine, e ele não é preso. Elster vai para a Europa, levando a fortuna de sua falecida esposa consigo. Scottie visita o túmulo de Madeleine, e ao chegar em casa tem pesadelos horríveis com ela. A cena do pesadelo é bastante destacada, com presença marcante de música, uso forte de filtros artificiais (principalmente azul e vermelho) que fazem as cores se alterarem rapidamente, e é realçado o colar de Carlotta, que aparecerá com destaque depois. Scottie sonha que cai num abismo que é o túmulo de Carlotta, e de lá vai parar no telhado da Igreja onde Madeleine morreu. Ele acorda desesperado, e na cena seguinte já não dormia mais em casa.



Scottie já mostrava sinais de profunda depressão desde o julgamento, e vai parar numa clínica. Midge tenta animá-lo, mas Scottie tem um olhar vazio, e não sorri. Ela se desespera e perde as esperanças, apesar de ainda ser uma figura maternal, o que fica evidenciado quando ela diz “Você não está perdido. Mãe está aqui”. Também fica claro que uma das razões para Midge sofrer com o estado de Scottie é o fato de ele ter ficado assim por estar apaixonado por Madeleine. Assim, Midge deixa o filme, num tom azul melancólico. Sem sua “mãe”, Scottie parece perder os últimos fios de razão que tinha, ainda que se livre da depressão.


Scottie volta a ter uma vida normal, mas não se livra da obsessão por Madeleine. Ele observa o hotel onde ela costumava se hospedar, e fica intrigado ao ver de longe um carro idêntico ao que ela usava e uma mulher que de longe parece ser ela. Ao se aproximar, ele percebe que é na verdade uma senhora, ainda que Kim Novak provavelmente tenha atuado na tomada em que vemos a mulher de longe. Ele também retorna ao Ernie’s, onde novamente tem a impressão de ver Madeleine. Novamente, Kim Novak atua na parte da cena em que ela é vista de longe, mas, ao voltar para a visão de Scottie quando ela se aproxima, percebe-se que é outra pessoa. O mesmo procedimento ocorre no museu, ainda que seja possível perceber que com certeza não é Kim Novak/Madeleine desde a tomada de longe pela cor do cabelo. Depois de tanto procurar por Madeleine, ele a acha, ainda que esta não seja mais Madeleine. Uma mulher de verde – novamente o verde – atrai sua atenção na rua, e vê-se que é Kim Novak, quase irreconhecível (na primeira vez que vi o filme, achei que era outra atriz), com maquiagem, cabelo, figurino e até modo de andar e falar diferentes. O tema de amor de Herrmann volta a soar forte depois de muito tempo.

 
 Scottie segue “Madeleine” até seu quarto de hotel – o letreiro luminoso é enfatizado -, e a aborda. Scottie entra no quarto, apesar da relutância de Judy, e novamente Kim Novak (também) é mostrada através de um espelho. Quando Scottie deixa o quarto, novamente é usado um filtro – vermelho -, para introduzir e concluir a lembrança de Madeleine do incidente na torre, onde a mulher de Elster, e não ela, foi jogada. Madeleine resolve arrumar as malas, mas ao tocar no velho “vestido” cinza, parece mudar de idéia, e a música, que tinha um tom tenso, se mistura a uma variação do tema de amor. Ela escreve uma carta de despedida onde revela que também amou e ainda ama Scottie, mas desiste e resolve se encontrar com ele. Eles vão ao Ernie’s, e há um movimento de câmera semelhante ao da cena inicial no restaurante para mostrar Scottie e Judy jantando, juntos no mesmo quadro. Judy se veste de lilás, uma cor nunca usada por Madeleine. De novo a mulher parecida com Madeleine aparece, o que deixa Scottie inquieto – e Madeleine percebe.
Eles voltam ao hotel, e o grande letreiro verde é destacado de novo. No quarto, Scottie é mostrado através de um espelho no quarto escuro. A fonte de iluminação principal do quarto é o letreiro verde, e vemos, através dos olhos de Scottie, os contornos de Judy com um fundo (cortinas) verde por trás.


Scottie convence Judy a sair com ele, e logo ele está querendo transformá-la em Madeleine, comprando as roupas que ela usava, e mandando-aela mudar o cabelo para torná-lo igual ao de Madeleine. Scottie tem prazer em levá-la para fazer tudo isso e transformá-la, assim como o próprio Hitchcock fazia questão de ir fazer compras e avaliar o figurino de suas estrelas. Judy parece ser contra, sentindo que o que ele ama de verdade é a cópia de Madeleine, mas acaba aceitando. Inicialmente, Judy não aceita usar o mesmo corte/estilo de cabelo – em espiral, como o motif do filme - que Madeleine, mas Scottie a convence. O tema de amor volta a tocar, mais tenso do que de costume já que Scottie parece nervoso ante a possibilidade de ver Madeleine de novo. Quando vemos Judy de novo através dos olhos de Scottie, ela está cercada por uma luz verde e pálida, o que aliado à roupa cinza a faz parecer um fantasma. Scottie se emociona, e eles se beijam apaixonadamente. O fundo deixa de ter tons verdes e passa a ficar escuro. A câmera gira e gira ao redor do casal, e depois de um tempo Scottie se vê no curral da missão de San Juan Baptista de novo. Ele parece assustado por um momento, mas volta a beijar Judy, e de novo se vêem as cortinas verdes do quarto. Essa cena deve ter sido particularmente especial para Kim Novak, já que ela era uma substituta (Hitchcock queria Vera Miles, mas ela ficou grávida) fazendo uma substituta (Judy-Madeleine) de uma substituta (Madeleine-esposa de Elster).


 Na cena seguinte eles estão no quarto, se arrumando para jantar no Ernie’s uma vez mais (“Afinal, ele é o nosso lugar, não é?”), com a luz verde mais fraca dessa vez. Judy pede para Scottie ajudá-la a colocar um colar, e Scottie percebe imediatamente que aquele é o colar de Carlotta. Scottie num instante percebe/adivinha a verdade, e se propõe a jantar num lugar diferente. Judy aceita, crente de que não há mais jeito de perder Scottie. Scottie a beija sem paixão, e o tema de amor dá lugar a uma música de suspense. 


  Scottie os leva até a velha missão espanhola, dizendo que precisa fazer mais uma coisa antes de se livrar do passado. Judy entra em pânico. Scottie parece assumir uma nova personalidade, e sua voz parece cruel, impiedosa. Ele a leva até a torre, e as escadas. Os temas de Herrmann se misturam até darem lugar a uma música tensa quando Judy finalmente começa a subir as escadas. De novo são usados alguns vertigo zooms, mas eles parecem menos intensos agora. Scottie consegue subir até o topo com Judy/Madeleine, e arranca dela toda a verdade. Judy tenta dizer a Scottie o quanto ela também o ama, o tema de amor toca mais desesperado do que nunca, mas por um instante parece que eles terão um final feliz. Eles se beijam. De repente, se ouvem passos, e uma freira aparece das sombras. Madeleine se assusta e recua, até tropeçar e cair do alto da torre. A freira diz “Que Deus tenha piedade”, que eu particularmente vejo como mais um sinal de religião nos filmes de Hitchock, um cristão convicto. Como se ele pedisse piedade por cometer tal ato. De fato, até mesmo para o padrão de filmes de Hitchcock, o final de Vertigo é talvez o mais frio e cruel. O vilão (Elster), ainda que não apareça muito, não é punido – é a única vez num filme de Hitchcock que isso acontece -, e a “mocinha” morre por acidente. A câmera se afasta da parte de dentro do topo da torre, e observa Scottie de fora. Ele fica parado a alguns passos de cair, observando o corpo de Madeleine, quase sem reação. E com a música parecendo mais sombria do que nunca, e os sinos da Igreja tocando, o filme acaba.



P.S.: uma versão alternativa do filme tem um final diferente. Nele, Scottie aparece ao lado de Midge depois da morte de Madeleine, e eles escutam a notícia de que Gavin Elster foi preso na Europa pelo rádio.


Alguns dizem que este filme é um neo-noir de Hitchcock, e, de fato, ele tem alguns elementos de filme noir. Madeleine pode ser uma das típicas loiras frias de Hitchcock, e portanto uma femme fatale, por levar Scottie à desgraça e loucura, mas faz isso de um jeito bem menos intencional e sedutor do que as musas dos filmes noir. Como semelhança há o fato de que, como uma parcela considerável das femmes fatales, Madeleine trabalha para um homem, mas acaba se apaixonando por outro, geralmente o que ela devia/queria destruir. Há qualidade e atenção dada à trilha sonora e às cores que nenhum filme noir tem (principalmente as cores, já que a grande maioria deles foi filmada em preto e branco). As cenas de investigação de fato são bem ao estilo noir, mas mesmo elas são filmadas numa São Francisco quente e bastante iluminada, ao contrário dos cenários normais de filme noir, geralmente sombrios e/ou noturnos. Também há um espaço e uma profundidade para o lado emocional do personagem principal que aproxima o filme mais dos thrillers psicológicos do que dos filmes noir. De certo modo, Hitchcock elevou os filmes noir, que tinham “saído de moda” alguns anos antes, a um novo patamar.