quarta-feira, novembro 23, 2011

Leões Nas Ruas

Leões...
Leões nas ruas. Leões nas ruas e vagando, feras no coração da cidade. Leões em ruas quaisquer de cidade quaisquer de ruas várias. Sangue nas ruas. Os homens não conseguem ver os leões. Não é do seu feitio, e os leões apreciavam demais observar os homens para ameaçar o caráter oculto de sua presença. Não reconhecem, mas são cegos. Não enxergam até uns de sua própria espécie. Olham para o céu em desespero e o vêem cada vez mais escuro, até as estrelas lhes abandonam. Enquanto isso os leões descansam. Dois, três quartos do dia, dias inteiros, meses, anos inteiros. Em silêncio. Não se deixam dormir, não se deixam sonhar. Se entopem de imagens e sons, buscam carinho, alívio – amor? nem eles mesmos sabem o que é -, saber, escolhendo acreditar em certas mentiras, tentam se esquecer de seu inevitável fim. Os leões se contentam em apenas ser/existir. Não riem, não choram. Não se sujeitam às efemeridades e loucuras dos homens. Os homens são selvagens. Se matam, se comem, se beijam, sem controle, sem razão, sem finalidade. Seus lares são jaulas disfarçadas para animais treinados. Os homens precisam dos leões mais do que são capazes de imaginar. Leões, com suas lápides eloqüentes de um passado ou de um futuro argüido pelos anos. Sim, alguns leões pereceram desde que eles passaram a viver entre os homens, desde uma época de que nenhum leão se lembra mais. Mas de tempos em tempos os leões conseguiam se fazer sentir, e isso os satisfazia. Seus espíritos tocavam os homens, e eles rugiam de seu modo próprio. Mas a crescente surdez seletiva dos homens e sua “superior” racionalidade tornavam isso cada vez mais difícil. Os leões, pacientemente, esperavam.

Em tempo um leão cansou de observar as tolices dos homens. Ao descansar, olhou para o céu, e o não o reconheceu. Não era o seu céu, mal se via a Lua, que parecia distante. E quis dormir, dormir, dormir, dormir, por muito tempo. E se tornou desleixado. Até que, numa tarde de fim de verão, um menino fazia seu trajeto diário, tão repetitivo e – por conseqüência – chato que o pensamento do menino mal se segurava no chão. O menino então viu o leão alvijubado. Tomado pelo medo, o menino ficou imóvel. O leão, fascinado pelo que via, simplesmente observou o menino serenamente. E o menino olhou nos olhos do leão, certo de que morreria. O leão encarou o menino por mais uns segundos, certo de que tinha tocado o menino, e se foi. E então o menino entendeu.

A maioria dos leões voltou para seus lares, enfim. Deixaram os homens entregues aos próprios venenos. Que – talvez – aprendam. 



E se não tiver ficado claro, a ideia pra esse texto veio de exposições repetidas a isso:
 

domingo, outubro 30, 2011

Oceano


            Com as pernas exaustas de tanto vagar sozinho por aquela cidade que lhe era desconhecida, o homem resolveu descansar. Era um turista, afinal de contas. Um tempo pra pensar e uns drinques à beira-mar não lhe fariam mal. Quem sabe algumas horas num bar agradável regadas a um bom vinho ou whiskey dariam um propósito maior àquela noite, até então sem emoção. Depois do terceiro copo (ou seria o quarto? estava tão imerso em devaneios que só a conta trazida pelo garçom lhe daria números exatos), começaram a lhe aparecer mulheres que de longe pareciam tão solitárias quanto ele, com aquele ar triste de fim de noite. E, como que para dar utilidade à cadeira vazia perto do homem, se aproximavam, sem muitas esperanças de trazer um sorriso àquele rosto marcado.
                A primeira que chegou tinha olhos... na verdade o homem não sabia exatamente a cor deles. Podiam muito bem ser verdes, mas meio azulados, talvez, dependendo do ângulo?... Eram de cor (falsa?) tão nova que ele se perguntava se eram os dois da mesma cor, como se um só não fosse milagroso o suficiente. Ela se sentou sem alarde, e depois do segundo copo parecia não querer sair tão facilmente. Apesar de o sorriso ser amplo e receptivo, definitivamente havia alguma coisa errada com os olhos. O assunto corria razoavelmente bem, ainda que sem muita profundidade, mas o problema com os olhos ainda desconcertava o homem. Não, definitivamente não eram da mesma cor. O homem passou a encará-los, o que fazia eles se movimentarem cada vez mais rápido e em diferentes direções, enquanto estranhamente ela parecia cada vez mais simpática (o que era estranho, já que os olhos demonstravam insegurança). Cordialmente, a dispensou. Não podia confiar nela. Os olhos... não tinham uma só cor.
                A segunda que chegou tinha pálidos olhos azuis, claros como céu do mais profundo verão, ou um vasto lago desprovido de lama. Olhos azul-veludo. Era mais bonita que a anterior, e morena. Mas aquela era uma beleza triste, que, se dava sinais de alegria, logo mudava de idéia e se retraía. Não tinha jóias, colares ou brincos. Só os olhos, que valiam como safiras. Num dos bolsos, uma carta mal dobrada. E nos pés, - estranhamente - o que pareciam ser botas de couro (espanhol, talvez). O homem até tentou uma conversa, mas a melancolia da mulher rapidamente o contaminou, e pouco a pouco ele foi murchando em sua cadeira. Ao menor descuido, a mulher voltava os olhos para o mar, numa expressão de cansaço, como se chamada por ecos de uma maré distante através da areia. Apesar de já passar da meia-noite e as praias não estarem mais coloridas pelo Sol, o mar não tinha perdido seu charme. Ainda havia o som harmonioso da maré contra a areia, a brisa (aquela), o cheiro de maresia. O homem tentou sorrir, já que seu sorriso era tudo que ele tinha para lhe dar. Ela esboçou um sorriso indeciso, mas rapidamente desviou o rosto para baixo. Seus olhos fundos guardavam uma tristeza e um amor ocultos que eram fortes demais para ser comparados com qualquer outra coisa. Com um sinal de cabeça, o homem se despediu e deixou-a ir. Ela então deu as costas e foi embora, caminhando para longe em silêncio. Caminhando na direção do mar.
                A terceira que chegou tinha olhos pretos. Escuros, fortes, decididos. Tão pretos que ousavam por um instante parecer ter outra cor que não o negro, sem muitas exigências quanto à luz, e então sua mente clareava, e seu olhar divagava por caminhos desconhecidos. Mas não por muito tempo. Das três que tinham passado pelo homem naquela noite, ela era a mais “normal”, por pior que essa denominação soe. A conversa corria bem. Mesmo assim, o homem tinha medo de mergulhar naquele infinito escuro, ainda que tivesse um desejo incontrolável de fazer o mesmo. No rosto dela um sorriso decidido, e cabelos também negros escorrendo até os seios – linhas elegantes em chiaroscuro. Em algum momento ela olhou profundamente nos olhos do homem, e o olhar dela era de adeus.
-Tenho que ir – ela disse, não revelando traços de saudade prematura (ainda).
-Eu sei – disse o homem, depois de hesitar por um instante e cogitar perguntar o porquê. A verdade é que ele não precisava de porquês.
-Então... adeus.
-Adeus... espera.
Para a surpresa da mulher, o homem tirou-lhe uma foto, com uma Polaroid velha. Ele não se daria a chance de deixar de ver aquele rosto em sua mente. Olhou para ela, que ainda balançava o rosto e piscava os olhos por causa do flash, e sorriu. Como não conseguiu encontrar a mentira certa para explicar aquilo, disfarçou pedindo o telefone dela com o pouco de audácia que lhe sobrara. Ela gentilmente escreveu os tais números na foto, e se foi.
A quarta que chegou... bem, o homem não pôde reconhecer a cor dos olhos dela. Ela usava óculos levemente escuros, que combinados com o whiskey e com a fumaça de cigarro que ela carregava, tornavam impossível a denominação dos seus olhos. Como que vinda da própria fumaça, sentou suavemente na cadeira à frente do homem. Na sua chegada não trouxe nada, também nada perguntou. Tinha um sorriso indecifrável. O homem só parou, encarando-a. Os óculos funcionavam como um tipo – precário – de espelho, e através deles o homem via seus próprios olhos, de cujas cores e contornos já tinha se esquecido.
-Vamos? – disse ela. O homem cogitou perguntar pra onde, mas desistiu. Já passava da hora de sair, e não era preciso muitas qualidades para que uma compania lhe parecesse lucro naquele momento. Queria ver o que ela fazia, olhando olhos nos olhos.
E então o homem pegou a estrada para o fim da noite. No bolso, a foto e o telefone da mulher de olhos pretos. Precisaria da verdade daqueles olhos em outro momento. Ao olhar para o lado, viu de relance o mar, e parou por uns instantes para contemplá-lo em sua imensidão salgada. E tudo é verde e submarino.
 

terça-feira, outubro 18, 2011

O Filme Das Sete Mulheres ou Tarantino, O Podólatra




De novo me afasto da tendência original do blog, mas senti uma súbita vontade de fazer uma análise do filme 'À Prova de Morte' (Death Proof, 2007), que recebe pouca atenção se comparado a outras obras do cultuado diretor/roteirista/ator/produtor Quentin Tarantino, como 'Bastardos Inglórios' e 'Pulp Fiction', só pra começar. Uma prova disso é o fato de ‘À Prova De Morte’ só ter sido lançado oficialmente no Brasil em julho de 2010, alavancado pelo sucesso de ‘Bastardos Inglórios’. Vi o filme pela primeira vez em julho desse ano, e ele instantaneamente se tornou um dos meus favoritos, me deixando com um sorriso que poucas pessoas já viram. Decidi vê-lo de novo hoje, e o resultado é o texto que vem a seguir.
Antes de qualquer coisa, é bom avisar que esse texto está cheio dos infames spoilers. Chega a ser óbvio, mas é sempre bom lembrar. Para aquele que não viu o filme, eu recomendaria vê-lo primeiro e depois (talvez) ler o texto, para comparar opiniões ou coisa assim. Também vou dizendo que, por abordar noções básicas de machismo/feminismo no texto, vou acabar me contradizendo ou mostrando meus próprios preconceitos. Se isso acontecer... bem, pelo menos eu previ a desgraça.


PARTE 1 (Austin, Texas)

Desde o primeiro quadro, notam-se problemas na imagem que parecem bem incomuns para um filme feito em 2007, como rabiscos ocasionais, pontos pretos e coisas de que eu não tenho vocabulário para falar, o que dá ao filme ares de produção de baixo orçamento e por que não antiga, e também serve como forma de referência aos filmes que serviram de inspiração para esse (o IMDB.com me diz que o filme foi fisicamente – e não digitalmente - arranhado para parecer mais sujo). Outro fato interessante é, nos créditos iniciais, a aparição de outro título, que poderia muito bem ser de um filme de carros dos anos 70. Pode-se ver por um instante 'Quentin Tarantino's Thunderbird', e até ouve-se um efeito de som que realça a aparição do título "alternativo", antes de o nome 'Death Proof' aparecer rapidamente sobre um fundo preto. De acordo com Robert Rodríguez, diretor, parceiro e amigo de longa data de Tarantino que ajudou a criar o título, Tarantino tinha o título na cabeça, ou seja, o título “alternativo” foi intencionalmente colocado lá.


 

O filme começa com... pés. Sim, pés! Pés femininos com unhas pintadas de um vermelho vibrante. Essa é só uma das várias cenas envolvendo pés femininos... Tarantino, o senhor é podólatra? Se não for, me desculpe. Podem ser encontrados mais momentos relacionados a pés na filmografia de Tarantino, como a cena em que a personagem de Uma Thurman tenta mover os pés dentro do carro em Kill Bill Vol.1, de novo Uma Thurman dançando descalça em Pulp Fiction e as japonesas tocando ‘Woo Hoo’ descalças em Kill Bill Vol.1.Baseando-se nas cenas seguintes, pode-se supor que sejam os pés de Jungle Julia (interpretada por Sidney Poitier). Depois desse primeiro quadro, aparece Jungle Julia em casa, e a câmera a segue (principalmente seus pés por uns segundos) até o sofá, onde ela estira as pernas, assim como a atriz (que eu desconheço) que aparece num quadro enorme pendurado na parede, e fuma um baseado. Também nas primeiras cenas, a câmera também segue os passos de Arlene (interpretada por Vanessa Ferlito), se focando nos seus pés (não é culpa minha) e nas pernas enquanto ela corre em direção ao banheiro. Na cena seguinte, Jungle Julia, Arlene e Shanna (interpretada por Jordan Ladd) estão no carro conversando, enquanto (pasmem!) Jungle Julia estende as pernas para fora da janela. Enquanto passeiam, vêem algumas vezes outdoors com Jungle Julia, que é DJ de uma rádio local, e é mostrada com as pernas bem realçadas, digamos assim.


Nesse primeiro diálogo entre as três garotas, é possível notar pequenos sinais de independência nelas. Arlene conta que na noite anterior, depois de dar uns amassos (na falta de expressão melhor) no... parceiro no sofá de casa, com ela sentada de pernas abertas sobre ele (ou seja, no topo), o mandou voltar para casa para que ela pudesse dormir, recusando (e prevendo) um pedido de dormir (realmente dormir) na mesma cama. Ela também fala de como ele protestou, usando um verbo que está relacionado a protestos em que a pessoa parece choramingar: whine. Por sua vez, Shanna (Banana) ressalta que no dia seguinte as três irão para a casa de lago do pai, onde homens (que não o próprio pai, que gosta de espiar) não são permitidos. Nenhuma das três se mostra contra tal restrição. E, para terminar, Jungle Julia reclama veemente sobre a idéia de pedir para os homens trazerem maconha, dizendo que não quer depender deles. Quando Shanna sugere conseguir a droga com Lanna Frank (ou seja, uma mulher), Jungle Julia fala: “Essa foi a melhor idéia que você teve no dia inteiro”.
Então aparece pela primeira vez com destaque o carro “à prova de morte” de Stuntman Mike (interpretado por Kurt Russell), que será tão importante para o filme, passando meio que por acaso pela rua e vigiando o trio. Antes disso, o carro foi mostrado logo na segunda cena, através de uma câmera colocada logo atrás no capô, enquanto o veículo corria pela estrada. Ele também foi mostrado discretamente seguindo o carro do trio de meninas, enquanto elas passavam por um outdoor. Arlene percebe algo estranho no carro e no seu motorista, que a encaram (o próprio ronco do motor do carro como forma de intimidação), mas depois de alguns segundos Stuntman Mike parece seguir seu caminho.
Na cena no Guero’s, Tarantino segue sua rotina de usar várias referências nos seus filmes, o que fica claro pelas paredes do bar, repletas de pôsteres de filmes antigos e pouco conhecidos. Enquanto as garotas tomam margueritas, Jungle Julia fala sobre como disse na rádio que uma amiga sexy em visita à cidade e apelidada de Butterfly (realmente não consegui tirar nada desse apelido) daria uma lap dance aos que seguissem certo ritual. Mais sobre isso depois. Também há uma pequena discussão sobre o bumbum de Jungle Julia, tido por Arlene como uma bunda (sim, bunda) tão grande que já não se equivale a uma bunda de uma mulher negra, numa referência a um diálogo do filme ‘Fogo Contra Fogo’ (Heat). Enquanto Al Pacino grita “She’s got a GREAT ASS!”, Arlene fala “She’s got a BIG ASS!”. Ao ouvir isso, Jungle Julia se gaba das marcas de dentes na sua bunda, tanto de homens negros quanto brancos, numa declaração que pode lembrar as típicas conversas entre homens nas quais eles expõem suas proezas sexuais. Em mais uma ação que provavelmente é mais freqüente entre homens, elas saem do bar bêbadas, gritando e caindo de embriaguez. As três também são mostradas fumando desde o começo do filme, em várias cenas.


Na saída do bar, é mostrado Stuntman Mike, encoberto pelas sombras e sorrindo da cena que as três bêbadas fazem. Ele é mostrado pela primeira vez num close, enquanto coloca colírio nos olhos (também não consegui tirar nada disso). Também são mostradas fotos das três garotas, tiradas pelo próprio Mike, dentro do carro. Assim é mostrado que Stuntman Mike é (entre outras coisas; mais sobre os fetiches desse personagem depois) um voyeur, que sente prazer em observar suas vítimas por um tempo e admirar suas fotos antes de atacá-las.


O clima muda, e agora estamos no Texas Chili Parlor, um bar de jukebox generosa, chefiado por Warren (interpretado pelo próprio Tarantino). Depois de algumas doses, Arlene vai para o lado de fora do bar, onde cai uma tempestade, para fumar. Seu parceiro, Nate (interpretado por Omar Doom, também presente em ‘Bastardos Inglórios’, assim como Eli Roth, que interpreta Dov, pretendente de Shanna) aparece e sugere que eles dêem uns amassos no seu carro, se protegendo com um guarda-chuva rosa. Na verdade, ele faz o pedido parecendo uma criança de cinco anos pedindo por doce, e apesar de o ato de oferecer um guarda-chuva para que a parceira não se molhe parecer digno de um cavalheiro, o fato de ele só fazer aquilo para poder dar uns amassos nela antes da viagem e o guarda-chuva rosa tiram-lhe essa imagem. Arlene, por sua vez, ordena que ele pare de choramingar (de novo o verbo ‘whine’) e de implorar, e estabelece que eles só ficarão no carro por seis minutos, e que Nate tem duas tarefas: beijar bem e ter certeza de que o cabelo dela não fique molhado. Nate, claro, aceita tudo sem objeção.


Ainda no bar, Stuntman Mike é mostrado claramente pela primeira vez, usando uma jaqueta de dublê e comendo nachos com as mãos. Ele oferece uma carona a Pam (interpretada por Rose McGowan), e o jeito como ele dá o tom da conversa não dá a transparecer que ele é, na verdade, um maníaco. Enquanto isso, Stuntman Mike continua fazendo o papel de voyeur e observa o trio. Mas ele não é o único a observá-las. Tarantino, conduzindo a câmera de um jeito que lhe é peculiar, muitas vezes com o uso de câmera de mão, faz questão de filmar o corpo de suas belas sem nenhum pudor durante todo o filme. São tantos exemplos que é até inútil colocá-los aqui. Não seria Tarantino (e outros diretores) também um voyeur, sentindo prazer em encher seu(s) filme(s) de coxas, cabelos, bundas (ainda que escondidas) e, por que não, pés? Estaria ele contribuindo para a objetificação do corpo feminino, tão banalizada nos dias de hoje? Talvez sim, mas a forma como ele faz isso (assumindo que sim) é diferente da normal. As mulheres (e seus corpos, realçados por shorts curtíssimos e camisas apertadas, como se isso não fosse óbvio) também são mostradas como objeto de desejo, mas não como ‘sexo frágil’, ou como personagens que só realçam a masculinidade dos heróis (007?). Em ‘À Prova de Morte’, as mulheres ganham bastante destaque, e, quando tratadas com violência, atacam e se vingam furiosamente.


Na cena seguinte, seguindo a tendência, Jungle Julia é mostrada de pernas estiradas na varanda do bar, o que faz seus pés e suas pernas ficarem repletos de gotas de chuva. Junto com as outras garotas e seus parceiros, ela continua a bebedeira, e divide a maconha, trazida por Lanna Frank. Stuntman Mike se apresenta, falando de um jeito inseguro, perguntando se ela era realmente a garota dos outdoors. Julia o acha estranho. De volta ao bar, Mike percebe que ninguém conhece os filmes em que ele diz ter trabalhado, o que o deixa com cara de poucos amigos. Enquanto isso, Arlene parece transtornada pelo fato de nenhum homem tê-la abordado à procura da já-mencionada lap dance. Percebendo isso, Stuntman Mike faz o ritual e exige uma dança. Assustada com o carro à prova de morte e com suspeitas de que ele as seguia (Mike nega), Arlene, a princípio, mente que já tinha feito uma dança mais cedo e se recusa a dançar para Mike. Mike ameaça colocá-la no seu livrinho sob a categoria de covarde (chickenshit – merda de galinha), o que faz Arlene mudar de idéia. Também é digna de nota a reação de Jungle Julia a Arlene ter aceitado dançar para Stuntman Mike. Ela diz: “Que parte de ‘Meio fofo, meio gostoso, meio sexy, histericamente engraçado mas não de um jeito (visualmente falando) engraçado com quem você poderia transar’ você não entendeu?” (ela havia usado essa descrição mais cedo para tranqüilizar Arlene sobre a idéia de dançar para um desconhecido). Arlene só sorri.
O caso da lap dance é um a ser discutido. Primeiro, por causa da denominação. Que eu saiba não existe uma tradução direta para o termo em português, até porque me parece que seja um tipo de dança mais comum nos Estados Unidos (a cultura americana invade o mundo de tal modo que eu não posso falar com propriedade sobre outros países nesse momento). Também não pode ser traduzida como striptease, termo apropriado pelos brasileiros, já que um striptease, ainda que também seja um tipo de dança sensual, envolve a retirada de roupas, enquanto na lap dance isso não é obrigatório. A lap dance, pelo menos a meu ver, está associada à imagem das prostitutas, pagas para realizar tal dança que envolve sentar no colo do homem (ou mulher, quem sabe?). Ou, ainda por essa associação, uma forma de subverter o objeto de desejo de Mike à sua vontade antes da matança. Um sinal da idéia de superioridade de Mike no momento está no fato de Arlene ficar de joelhos em alguns momentos da dança, e isso filmado por uma perspectiva que realça a diferença de altura entre os dois.
De qualquer modo, a lap dance de ‘À Prova de Morte’ é a cena de dança mais sensual que eu já vi em um filme. Arlene usa e abusa de todo o seu sex appeal, se exibindo para o único homem que requisitou os seus encantos (tirando, é claro, seu ‘parceiro’). Ela sorri, como se sentir-se desejada (e segura, já que não transaria com Mike) fosse extremamente prazeroso. A dança é sincronizada com a música ‘Down In Mexico’, do grupo The Coasters. Na letra, um homem está num bar (digamos assim) mexicano, e fala de uma mulher que entrou de repente no bar (nessa hora o ritmo da música acelera, o ritmo da dança acelera, e o ângulo de câmera também muda) e dançou com ele ao som de uma música latina, de um jeito que ele nunca tinha visto. Tarantino, por sua vez, alterna a câmera entre a visão de Mike, uma visão mais ampla, como se vinda da porta do bar, e closes em alguns momentos, endeusando ainda mais sua atriz. Outro fator interessante é o fato de que, das várias pessoas que assistem a dança no bar (Jungle Julia e Shanna Banana não se incluem nesse grupo), as que parecem mais animadas são duas mulheres orientais, que entraram de mãos dadas no bar, o que é mostrado brevemente antes da câmera se voltar ao trio. Ao final, trinta segundos antes do fim da música, há um corte brusco e intencionalmente malfeito, e de repente estamos do lado de fora do bar, e a câmera mostra todos se preparando para partir. Agora eu pergunto: POR QUEEEEEEEEEE? POOOR QUEEEEEE, SR. TARANTINO?! Isso pode até realçar a imagem do filme como um de baixo orçamento, mas era realmente necessário?


 Continuando... Arlene, Jungle Julia, Shanna Banana e Lanna Frank se preparam pra ir embora, e Stuntman Mike também vai, levando Pam de carona. Enquanto Mike e Pam se dirigem ao carro ‘à prova de morte’, Arlene e Jungle Julia brincam sobre a possibilidade de Mike e Pam transarem. Em outras palavras, de Stuntman Mike estuprar Pam! Pam, obviamente, nega a possibilidade de transar com Mike. De fato, o que acontece com Pam é bem pior que isso. Ela ainda cogita desistir da carona ao ver o “assustador” carro de Mike, com um adesivo de caveira enorme no capô, mas, apesar de ficar dentro de uma caixa e de sentar num tamborete, na falta de denominação melhor, ela acaba aceitando. Mike, ao falar dos tempos em que não havia efeitos especiais para criar cenas de batidas a partir do computador, menciona “os dias de Vanishing Point”, em que carros reais batiam em carros reais, com pessoas realmente burras dirigindo eles. Esse filme, certamente um dos que serviram de inspiração para a criação de ‘Death Proof’, será lembrado mais tarde. E, num exemplo clássico de ironia de Tarantino, Mike fala que a caixa na qual Pam é colocada é usada às vezes por diretores que querem colocar câmeras no carro. De fato, Tarantino usa câmera(s) dentro do carro para filmar a cena seguinte.
Antes de entrar no carro, Stuntman Mike observa o carro das garotas indo embora sob muita gritaria, e sorri ironicamente. Obviamente, ele segue o carro delas, mesmo não sendo esse o caminho de Pam. Ela, coitada, não seria aquela a impedir Mike. Sem nenhuma segurança (o carro só é à prova de morte para o motorista), Pam é arremessada contra o metal do carro até morrer. Retomando, o assassinato é filmado, em sua maioria, por câmeras posicionadas dentro do carro. Com Pam morta, Stuntman Mike vê as fotos de Jungle Julia, Arlene e Shanna pela última vez, e as joga fora. Sua ‘etapa voyeur’ tinha terminado, e Mike parte para a etapa mais divertida.
Enquanto Mike assassinava Pam, as outras garotas partem rumo à casa do lago, quer dizer, a morte. Jungle Julia, como sempre, estende uma das pernas para fora da janela do carro. Ela pede a um amigo da rádio que toque ‘Hold Tight’, de Dave Dee, Dozy, Beaky, Mitch & Tich (sim, isso é o nome de uma banda). Ironicamente, na letra um homem pede à garota que segure firme. Com ou sem cinto (pelo que eu vi, só Arlene usava cinto), elas não estavam firmes o suficiente, e nem poderiam estar. Shanna, se inclinando em direção a Julia (no banco da frente), é arremessada com violência para frente, através da janela de vidro. Por ironia do destino, quer dizer, de Tarantino, a perna de Jungle Julia que estava para fora do carro é decepada e jogada longe (não tenho certeza se o mesmo acontece com a outra perna). Lanna Frank recebe o impacto de frente e o pára-brisas se quebra sobre ela. Arlene tem o rosto - mostrado em close como se ela se preparasse para a morte fechando os olhos - e a cabeça dilacerados pelo pneu do carro de Mike. O carro de Mike capota várias vezes, e parece perdido. Mike, obviamente, sobrevive, com alguns ossos quebrados. E, como todo bom psicopata de filme, escapa ileso de ir pra prisão. Um xerife local, ao explicar ao filho o porquê de tudo aquilo, sugere que essa seja a forma de Mike de se excitar/satisfazer sexualmente. De fato, não pode haver ação mais machista que se utilizar não só do corpo de mulheres, mas da vida delas para se satisfazer.



PARTE 2 (Lebanon, Tennessee – na verdade filmada em Buelleton, Califórnia) (14 meses depois)

Começamos, ao som de ‘It’s So Easy’, de Willie DeVille, num espaço para loja de conveniência, daquelas de beira-de-estrada. Outro muscle car entra em cena, desta vez o de Kim (interpretada por Tracie Thoms), que por coincidência também é dublê (esta realmente trabalha). ENTÃO, DO NADA, O FILME FICA PRETO E BRANCO. Esta eu realmente não entendi. O mais estranho é que o quadro continua o mesmo (pelo menos parece continuar), o que sugere que isso seja um efeito de computador. Mas pra quê?


De qualquer jeito, de novo Stuntman Mike aparece, fumando pacificamente em seu carro, quando avista um novo trio de garotas. Novamente, a primeira coisa que vemos de uma personagem, desta vez Abernathy (interpretada por Rosario Dawson), são os pés. Lee (interpretada por Mary Elizabeth Winstead) completa o trio. Stuntman Mike, ao avistar três garotas andando pela estrada em um muscle car, não resiste e a ‘etapa voyeur’ começa novamente. Stuntman Mike, com o carro parado a apenas alguns metros das garotas, ouve a conversa (assim como ouviu a conversa entre Pam e Warren na cena do bar) entre Lee e Kim. Em uma referência ao próprio filme, Lee fala que deu uns amassos (não consigo evitar) no seu parceiro da vez por dez minutos, e depois o mandou para o quarto dele, lembrando Arlene despachando Nate no primeiro diálogo entre o trio inicial. Mais tarde, em outra referência, Lee canta no carro (ao melhor estilo chuveiro) ‘Baby, It’s You’, de Smith, a primeira música que Julia dança no Texas Chili Parlor. Outra referência é um outdoor acima da loja de conveniência, no qual está escrito ‘POTHEADS’ (maconheiros). No banco de trás, Abernathy tenta dormir com os pés estirados para fora da janela. É possível ver que suas unhas estão pintadas de uma cor forte, ainda que seja impossível determinar a cor. Stuntman Mike ousa tocar seus pés, fingindo estar procurando sua chave, e depois vai embora fazendo o máximo de barulho e fumaça possíveis. Ao ver a saída em estilo de Mike, Lee ousa brincar com o maior motivo de ostentação de masculinidade por parte dos próprios homens e fala ‘Pau pequeno’ para Abernathy, que ri. Abernathy, a exemplo das outras, sai do carro para fumar, e por uns instantes vê o carro de Stuntman Mike a vigiando, antes que ele desapareça de novo. Então, NOVAMENTE DO NADA, AS CORES DO FILME VOLTAM. Enfim... as cores voltam quando Lee está comprando um refrigerante. A anormalidade disso é que ela está vestida de animadora de torcida/colegial (uma das fantasias sexuais mais clichês), com sua saia rodada curtíssima. A lata cai, e por um momento é possível ver alguns centímetros da calcinha de Lee por baixo da saia enquanto ela se abaixa pra pegar a lata. Obviamente, tudo isso é intencional. E em mais uma referência, o celular de Abernathy toca, e o que ouvimos é o assobio da personagem de Daryl Hannah durante a cena do hospital de ‘Kill Bill Vol.1’.


Kim, Lee e Abernathy vão buscar a dublê Zöe Bell (interpretando ela mesma, veja só!) no aeroporto. Enquanto isso, Stuntman Mike, como de costume, tira fotos de seus alvos. Em mais uma cena de diálogo em carros, o quarteto (trio+quarteto = explicação do título do texto) conversa alegremente. O assunto da vez, claro, são os homens. Primeiro Lee, que apresenta a perversão do seu parceiro atual: vê-la urinar. Depois Kim, que, ainda que não admita, é tida pelas outras como uma ladra de namorados. Não que homens roubem namorados uns dos outros, mas o ato de uma pessoa levar outra ao adultério me parece ser mais aceito socialmente quando ocorre de um homem ‘roubar’ a namorada do outro. Poderia até entrar na discussão do uso do termo ‘roubar’, como se namoradas fossem propriedades dos namorados, mas isso não é importante aqui. A bola passa para Abernathy, que, em mais uma referência, fala que o diretor do filme no qual ela trabalha (seu pretendente, digamos assim) transou com a stand-in de Daryl Hannah, já mencionada no texto. Abernathy então diz que não transou com ele em meses por não aceitar a idéia de se tornar uma das ‘regulares’ dele, com as quais ele transa-mas-não-namora há seis anos. Abernathy prefere manter seu respeito ao decidir não transar com seu pretendente, evitando o abuso+descarte de um homem com várias parceiras, mas as outras a aconselham a abrir mão disso o mais rápido possível, colocando o ato de ‘chupar’ o parceiro/namorado/pretendente quase como uma obrigação. Lee sugere se tornar ‘safada’ de repente, para surpreendê-lo e, por que não, abusar um pouco do homem também e/ou tomar o controle da situação. Abernathy sorri.
Uma nova cena começa, dessa vez com as quatro almoçando num restaurante, enquanto a câmera de Tarantino gira em torno delas. Em um momento da conversa, é revelado que Kim carrega uma arma, apesar de não ter permissão para isso. Abernathy diz que aquilo a torna mais propensa a tomar um tiro, mas Kim responde que carrega a arma para se defender de estupradores. De fato, aquela arma seria mais tarde usada como forma de defesa não só dela, mas também das outras contra Stuntman Mike, que ainda não seja um estuprador, pode ser considerado, no mínimo, um estuprador de mulheres. Depois, ao mencionar o filme ‘Vanishing Point’, Kim diz: “A maioria das garotas não assistiria/conhece Vanishing Point”, falando que ela e Zöe assistiram por serem viciadas em carros, e que “Vocês todas cresceram assistindo aquela merda de ‘A Garota de Rosa Shocking’ (Pretty In Pink, 1986)”. Assim, mostra o estereótipo que opõem filmes como ‘Pretty In Pink’ (de garotas) e ‘Vanishing Point’ (de garotos), que não deixam de ser estereotipados por si próprios.
Na próxima cena, Zöe vai atrás do seu Dodge Challenger branco de 1970, o mesmo do filme ‘Vanishing Point’. Quando Zöe conversa com o vendedor do carro, a câmera fica dentro do Challenger, como se numa previsão do que está por vir. A intenção de Zöe, na verdade, é “brincar” de ship’s mast com o Challenger nos Estados Unidos, e assim, realizar um desejo antigo. Ela consegue o que quer, mas para isso Lee tem que ficar com o vendedor (grande, gordo e feio) enquanto Zöe, Kim e Abernathy vão dar uma volta. Ao convencer o vendedor a ficar a sós com Lee, Abernathy realça a sua roupa de animadora de torcida, e deixa a sugerir que ela é uma atriz pornô. O vendedor, claro, não deixa a oportunidade passar, e mais uma vez, garotas deixam outra sob a ameaça de estupro e não fazem nada para impedir, e pelo contrário, riem. Lee, não sabendo do acordo porque estava dormindo, acorda e se depara com o homem, com cara de assustada. O destino de Lee é desconhecido.


Observando três garotas dirigindo um Challenger pela estrada, estando uma delas presa ao capô, o voyeur não resiste e parte para a ação. Em vez de uma só batida para matar todas de uma vez, Mike prefere perseguir o Challenger e bater nele repetidamente, o que quase custa a vida de Zöe. Tarantino, se utilizando de todo o aparato possível, como um terceiro carro com uma câmera filmando e câmeras dentro dos carros, nos dá uma emocionante cena de perseguição. Depois de um tempo, os dois carros param na estrada, e Mike ousa sair do carro e brincar com suas vítimas. Sua imprudência (não só em fazer isso, como em começar a perseguição sem conhecer bem os alvos) custa caro, e Kim atira no braço dele. Revigoradas depois de perceber que Zöe não está machucada, as garotas correm atrás de vingança. Stuntman Mike, seriamente ferido e berrando de dor, mal consegue dirigir, e é facilmente alcançado pelas garotas. Kim até grita, em meio à empolgação, “Eu sou a mais tarada/excitada (horniest) na estrada!”, entre outros insultos, o que sugere que as garotas também tiram prazer daquele ato. Os dois carros ficam lado-a-lado na estrada, e Stuntman Mike, depois de toda a exibição de masculinidade, tenta se desculpar pela “brincadeira”, pedido que é ironizado pelas garotas, que riem e quebram o carro dele ainda mais. A perseguição ao carro de Stuntman Mike continua, até que o carro é atingido com força na traseira e capota. Mesmo com Mike berrando por ajuda, as garotas não demonstram piedade. Tarantino as filma se dirigindo ao carro de Stuntman Mike por trás, focando primeiro em Zöe – da barriga para baixo – e depois em Kim e Abby – que levanta a ‘calça’ até a metade da coxa, se mantendo abaixo dos seus ombros, com as camisas rosas de Zöe e Abby reforçando a imagem de que elas são, realmente, mulheres. Elas o cercam e espancam o maníaco com brutalidade, numa cena cuja violência é aumentada com efeitos de som. Zöe chuta Stuntman Mike, ele vai ao chão. A câmera mostra uma tomada mais aberta, com Mike no chão, e as garotas levantando os braços para o céu de alegria, em referência aos filmes B de femsploitation dos anos 70 em que mulheres se vingam de um jeito violento e até exagerado, numa tentativa de se opor a filmes em que as mulheres eram exploradas com certa misogenia. As vítimas de Mike, e por que não as mulheres em geral, foram vingadas. A música é gloriosa, de comemoração. THE END. Há um corte brusco, e malfeito, e então podemos ler ‘Written And Directed by QUENTIN TARANTINO’.


Nos créditos, mais surpresas. Há uma continuação de alguns segundos da tomada final, com Abby aplicando a Mike um chute no rosto digno de filmes de kung fu. Os créditos têm como trilha sonora a música ‘Chick Habbit’, da banda An April March, que é cantada por uma mulher. Na letra, uma mulher exige a um homem para largar o ‘chick (gíria usada para se falar de garotas/mulheres) habbit’, que eu interpreto como o hábito de maltratar as mulheres – ela fala “uma garota não é uma tônica ou uma pílula”, se não quiser ficar sozinho, ou pior, ser “cuspido no olho” ou “cortado em dois”. Enquanto os créditos passam, são mostrados vídeos curtos e fotos de mulheres, sendo que a maioria parece ser antigo (dos anos 70, talvez?). Alguns sugerem que essas sejam outras vítimas de Stuntman Mike – Arlene também aparece - , mas o fato de essas mulheres aparecerem em vídeos e fotos que parecem ser bem pessoais (as fotos de Mike eram tiradas de longe, como as de um espião) descarta essa possibilidade. Sem falar que são mostradas algumas manequins! Acho difícil Mike ter atropelado manequins. Enfim, esse é outro detalhe desse fascinante filme que é um completo mistério para mim.



Acho que por hoje foi suficiente. Admito que perdi o controle, mas no fim acho que valeu a pena. Se você conseguiu ler até aqui, parabéns, você certamente merece um prêmio. Tenho a impressão de ter errado em colocar alguns termos mais específicos do cinema e de ter cometido alguns erros ortográficos, mas isso pode ser corrigido depois. Até por que eu é que não vou revisar essas nove páginas! Também gostaria de ressaltar que para que esse texto fosse escrito foram bastante úteis as informações do IMDB.com, como os nomes de todos os atores/atrizes e personagens e mais informações sobre os diferentes gêneros aos quais Tarantino faz referência.

quarta-feira, outubro 12, 2011

'A Saucerful of Secrets' ou Um Troço Secreto

Geralmente não escrevo especificamente sobre esse assunto ou tão especificamente quanto pretendo fazer agora, mas por algum motivo resolvi abrir uma exceção pra essa música/canção em particular. Talvez eu escreva mais vezes assim (para o blog), quem sabe?
Para deixar claro, vou tentar falar uma coisa ou duas sobre a música ‘A Saucerful of Secrets’ ('Um Pote/xícara/pires cheio de segredos') da banda de rock-progressivo (entre outros gêneros) inglesa Pink Floyd. Ela está presente no álbum de mesmo nome, lançado em 1968, e também no álbum Ummagumma (gravada ao vivo), de 1969, e no filme/álbum Live At Pompeii. Essas três versões são levemente diferentes, tanto em som quanto em duração. A versão de estúdio tem 11:52, a do Ummagumma 12:43, e do Live At Pompeii 9:44. Me focarei nas versões ao vivo, pois pra mim e pra grande maioria dos fãs da banda, são definitivamente superiores à versão de estúdio. Ela foi criada a partir de uma junção de algumas idéias de segmentos instrumentais, e houve contribuição de todos os quatro membros da banda, que dividiram os créditos. David Gilmour, que geralmente não demonstra muita paciência com grande parte das músicas da banda entre os anos de 1968 e 1972, tem boas lembranças da canção. Em entrevista, declarou que a banda realmente julgou ter conseguido alguma coisa com 'A Saucerful of Secrets', apesar dele mesmo admitir não entender muito bem o que estava fazendo naquele momento. Mais tarde, em 1987, ele rejeitaria o pedido de Nick Mason e Richard Wright de voltar a tocá-la em turnê porque achava que ela soava arcaica demais.
Não sei dizer bem como ou quando foi a primeira vez que a ouvi. Provavelmente em agosto ou setembro de 2010, quando ouvi o Ummagumma pela primeira vez. Se não me falha a memória, ouvi ‘por alto’ (sem prestar muita atenção), e não gostei muito. Devo ter achado sem nexo, ou barulhenta demais. Só voltei a dar a devida atenção à coitada em abril de 2011. O modo como o som parecia viajar de um fone de ouvido para outro (ou do canal esquerdo para o direito), principalmente o som da guitarra de David Gilmour, me intrigou. E desde então cultivei uma admiração crescente por essa canção.
A primeira parte da música, que é intitulada 'Something Else' ('Algo Mais'), começa silenciosa. O baixo (ou órgão) dá um toque solene na introdução, enquanto os outros instrumentos lentamente vão aparecendo. Nick Mason usa bastante os pratos de sua bateria, dando à música um clima tenso logo de cara, enquanto Gilmour começa a usar sua guitarra, com o auxílio de uma bottleneck (tubo oco que geralmente é preso a um dedo para poder então deslizar (slide) sobre as cordas. As pontuais intrusões de Gilmour dão um toque misterioso à já bastante misteriosa primeira parte, enquanto o som do órgão/baixo é cada vez mais presente e as batidas de Mason ficam cada vez mais frequentes. Há um clímax ensurdecedor, e o som cessa por uns instantes.
A segunda parte, intitulada 'Syncopated Pandemonium' ('Pandemônio Sincopado'), é iniciada com a bateria de Mason. O ritmo incessante com som de percussão é como tambores anunciando uma batalha épica ou o ínicio de um ritual antigo. Enquanto isso, Richard Wright (tecladista), que até esta parte da canção era o mais comportado, toca o piano de forma furiosa e desordenada, parecendo dar tapas e socos nas pobres teclas. Gilmour, ainda com a slide, se aproveita de equipamentos/efeitos sonoros para gerar ecos e distorções estranhas e tornar a música ainda mais etérea e enlouquecida. Roger Waters (baixista), na versão do Live At Pompeii, ainda pontua todo esse caos com batidas em um gongo, daqueles que só se vê em filmes chineses (ou sobre a China, enfim).
O caos cessa, e começa a terceira parte, intitulada 'Storm Signal' ('Sinal de Tempestade'). Agora reina uma atmosfera mais tranquila, liderada pelo órgão solene do agora mais calmo Wright. A guitarra e a bateria também se acalmam e até ousam manter-se silenciosas por alguns instantes, enquanto Waters volta ao baixo.
A terceira parte se desenvolve naturalmente, com um aumento gradual do ritmo e do volume, até a quarta parte, intitulada 'Celestial Voices' ('Vozes Celestiais'). Um leitor mais desavisado, ao ver a palavra 'vozes', pode imaginar talvez o aparecimento de partes vocais e letras, para talvez dar sentido a tudo isso. Não vai ser dessa vez. Gilmour, com um som de guitarra já mais parecido com o normal, pontua a música com um refrão (surpresa!), mas sem palavras. O que se ouve é um canto místico, e como diz o título, (reparem na falta de criatividade) celestial. E, com o fim desse canto, se encerra a obra-de-arte.
Para mim, toda a beleza da canção está no quanto ela é estranha, tanto quando comparada a outras do mesmo gênero quanto a músicas da própria banda. Em 'A Saucerful of Secrets', se abdicam de elementos que são importantíssimos para o rock até hoje, como um riff de guitarra daqueles que fica na cabeça, letras para dizer qualquer coisa, chocante ou não, um solo de guitarra poderoso, sem falar de toda a estrutura versos-refrão-versos-refrão ou coisa do gênero. O que existe aqui é a oportunidade de se ter uma jornada experimental que alterna entre tensão extrema e calmaria, através de diferentes ecos, ritmos e seções. Uma jornada (ou viagem) que eu espero que atraia cada vez mais ouvintes dispostos a se entregar a 9/12 minutos de uma música que até os dias de hoje pode ser considerada de vanguarda.





 

quarta-feira, setembro 14, 2011

Ideias


            Coisas perigosas, as idéias. Digo isso principalmente porque eu não tenho mais certeza se a palavra ‘ideia’ perdeu o acento agudo ou não. Já se tem o perigo do erro ortográfico logo de cara. Eu culpo o maldito acordo ortográfico. E meu desinteresse pelas aulas de gramática.
A acima de tudo, deve-se ter cuidado ao “soltar” as idéias. É mais seguro deixá-las presas em algum canto escondido da mente, onde nem você mesmo pode entrar. Não se deve dizer uma idéia em voz alta, ou escrevê-la, gravando-a fundo no papel. Isso porque ao fazer isso as idéias adquirem vida. Se tornam mais reais, e, livres, buscam mais justificativas para a própria existência.
É perigoso, dar liberdade para elas. Essas coisinhas maravilhosas se nutrem, assumem infinitas formas, se expandem. O pior é que têm suas próprias verdades, que de tão próprias podem se distorcer e se perder, sujeitas a íntimos caprichos. E como diria David Lynch, são todas válidas.
Então tome cuidado. Ao dormir, verifique se elas estão bem trancadas, cheque duas vezes, se preferir. São poderosas, essas malditas.

domingo, setembro 04, 2011

Oração a Morpheus


De uns tempos pra cá, fico torcendo pra me desejarem ‘Bons sonhos’ na hora das despedidas. Não que eu realmente acredite que vá fazer alguma diferença, como se isso fosse ligar um mecanismo dentro de mim que ativasse os sonhos. Mas vale a pena tentar.
E afinal, qual é a diferença entre um sonho bom e um sonho ruim? Os sonhos bons seriam os que lhe deixam alegres (enfim, fazem sentir bem) e os ruins os que lhe deixam tristes ou com medo (enfim, fazem sentir mal)? Mas que besteira. E os pesadelos, coitados, fonte de tão puro terror, provavelmente não existiriam se o Sonhar fosse democrático.
Já eu me contento com apenas sentir, o que quer que seja. Não me dou ao luxo de querer ter esse ou aquele sonho. Que me faça enlouquecer, que me entristeça, me deixe nostálgico ou sem entender absolutamente nada do que se passou, não importa. Que me emocione de algum jeito, para que assim, de olhos bem fechados, eu possa sentir sonhando o que não pude no mundo desperto.
Assim sonho: perdido no tempo. Sozinho no silêncio escuro. Preso no labirinto da minha própria mente. Sem controle. Ilimitado e ao mesmo tempo limitadíssimo pelas barreiras do inconsciente. Vigiado por olhos negros como a escuridão, olhos que brilham. Abro mão da lógica e da razão, e me entrego a esse caos calmo, à mercê das areias infinitas do Sonhar.
Mas se tudo isso for injusto e eu não possa lembrar dos sonhos sempre, que a justiça seja feita. Só não me desperte.

sábado, julho 30, 2011

Pedaços de Mim

          Home is where your heart is”, eu costumo ouvir. Mas penso que nesse momento não consigo dizer precisamente onde estão nenhum dos dois.
         Meu coração (assumindo o significado geralmente dado ao coração por razões práticas), não mais vermelho e quase cinza, perdido, machucado, em uma estrada qualquer, talvez, com manchas de sangue ao redor como uma parede em um filme de Quentin Tarantino. Cansado de suas próprias demandas infantis, escondido de outros corações, cada um com suas decepções próprias. Batendo forte o suficiente para sobreviver, apenas.
         Minha casa, com suas bases gastas, os cantos das paredes cheios de poeira e paredes carregadas de palavras mofadas e silêncios arcaicos, ou qualquer sentimento que seja. Um lar agora pequeno demais para acompanhar o crescimento dos meus braços e pernas, olhos e desejos. Lugar onde cores e coisas “familiares” podem não ser alegres como boas lembranças da infância, e por um instante parecer opacas, rasas, estranhas. Casa sem teto.
         Eu, trincado. Eu, em pedaços. Feito de cacos juntados às pressas e colados juntos por mãos desatenciosas, sem ordem ou compaixão. Construção malfeita que o espelho tenta inutilmente esconder. Ainda sobram algumas cicatrizes aqui e ali – que o corpo tenta fazer desaparecer –, testemunhas das feridas de outrora.

quarta-feira, julho 13, 2011

Lovin' You

Noite fria. Acabara de chegar em casa. Tinha sido uma noite maravilhosa e o que eu precisava, para dar a ela um final perfeito, era um pouco do bom e velho Zeppelin. Tinha conseguido uma versão que até então não tinha ouvido de ‘Since I’ve Been Loving You’ (título longo pra enormes sentimentos), e aquele era um momento perfeito para parar de me lamentar por não ter feito isso até então e finalmente ouvir.
                Fechei os olhos, não precisaria deles. É mais fácil sonhar de olhos fechados. Dispensei sentidos de que não precisaria, e deixei a audição tomar conta e fazer sua magicka. Que os oitos minutos parecessem durar uma vida inteira.
                No início só existe escuridão. Preto. Silêncio. E então começam as palavras mudas do som musical. Aumentei o som o máximo que pude e deixei ele me envolver. Ele se derramou dentro de mim e inundou todo, até só restar ele, completo em si mesmo. Assim o preto se tornou azul. Blues borbulhantes liquefeitos se bifurcando, se misturando à batida. Amor em azul. Não há necessidade de cantar. Naquele momento eu só sentia a música, só era a música, e queria guardá-la dentro de mim. A cada verso, a cada batida, a cada acorde, ao solo de arrepiar, trovões deliciosos dentro de mim.
Êxtase finito.
Abri os olhos lentamente, tentando não me desprender do sentimento rápido demais. Voltei. Vi as mesmas frias paredes, a mesma janela triste, a mesma inútil paisagem. Paisagem em preto e branco. Não mais azul por um tempo. Não que eu vá perder a cabeça por causa disso.



Baby, since I’ve been loving you, I’m about to lose my worried mind
Since I’ve Been Loving You
I’ve Been Loving You
Loving You


Love In Vain?

terça-feira, maio 17, 2011

You Put A Spell On Me/A Sociologia Diz...



Meu livro de Sociologia diz:
"Os meios utilizados para alcançar o poder podem ser muito diversos, desde o emprego da simples violência até a propaganda e o sufrágio por procedimentos rudes ou delicados: influência social, poder da palavra [...]"



Pareces ter um feitiço sobre mim, poder que é indecifrável, intenso
Tanto que às vezes se deixa esquecer, se camufla,
Quando de fato já está marcado, e deixou o corpo e tudo o mais acostumado
Feitiçaria das mais ardilosas e inebriantes.

Mas como? Por procedimentos delicados, com certeza
Pelo poder da palavra, talvez, palavra inaudível que ecoa longamente aqui dentro
Num simples olhar, na poesia, no jeito,
No tudo que pode ser descrido pelas palavras.

Como se fosses uma espiã nas partes mais íntimas de minha casa,
Sabes meu sonhos, meus medos, meus segredos,
Sabes as palavras que eu anseio em ouvir
E aceito esse ofício de bom grado.

O que pretendes com esse poder me é desconhecido
Se és culpada de thoughtcrimes nisso, desconheço
Mas me deixo levar pelo feitiço, me prendo suavemente, inocentemente, até
Sou teu.

Talvez, como tu disseste,
Sociologia seja, de fato, amor
Deixo esse feitiço escolher
Fico em tuas mágicas mãos.

sábado, maio 14, 2011

Surdez


Estou parcialmente surdo. Não que tenha perdido a audição, apesar dos avisos de alguns desafortunados que não compartilham de minha mania. Mas faz alguns dias que meus ouvidos mal-acostumados têm reclamado. É que meu companheiro fiel partiu. O meu fone de ouvido não funciona mais. Eu tentei de tudo. Eu tentei de tudo. Não funciona. Não funciona... Preciso urgentemente de um fone de ouvido.
Minhas sinceras desculpas aos que virão a achar esse texto digno da mais mimada das crianças, ou do mais fútil dos consumistas. Mas a verdade é que realmente preciso de um fone de ouvido. Se a música é o alimento da alma, um bom fone de ouvido é um cômodo aconchegante em casa, especial para se alimentar até que o enjôo chegue. Também pode ser aquela ajudinha ao caro cérebro, que em certas horas não consegue lembrar aquela canção por preguiça, ou por perturbação dos próprios ouvidos.
Não que eu não saiba apreciar a sinfonia do transporte coletivo da cidade, vulgarmente conhecido como ‘busão’. O retorcer dos metais, o roncar forte do motor velho, o alívio dos freios, o buzinar incessante, sem falar no coral aleatório de duas, quatro, quinze pessoas. Tudo isso tem seu charme, mas é que se perde a graça com o tempo. E assim se adquire uma surdez seletiva. Às vezes até aparece um maestro, que também vem a ser o motorista, mas não é a mesma coisa (não é a minha música, boa ou ruim).
A verdade é que sem ele eu me sinto só. Ainda pior do que só, naqueles momentos entediantes em que se podem ver dezenas de pessoas ao seu redor, mas ninguém para se conversar, naquela estranheza consentida que as cidades grandes parecem possuir com naturalidade. Qualquer que seja a mágica que essa coisa chamada música possui, não há forma mais íntima ou mais acalentadora dela se manifestar do que com o tal do fone de ouvido.
Ao som dos últimos versos de ‘Deus Lhe Pague’ (do Chico) ele se foi, depois de sete meses de lealdade. Agora espero que alguém me pague um novo. Quem quer que seja. Antes disso foi ‘The End’ (The Doors). Como se ele tivesse anunciado seu fim pra mim, falado comigo. Devia ter ouvido.

quinta-feira, janeiro 20, 2011

Náiade

Estou em uma floresta densa, perdido. Olhando pra cima posso ver a Lua se esconde entre as copas das árvores, derramando calma e silenciosamente uma cortina escura sobre as terras abaixo, como uma mãe a cobrir seu filho já sonolento com um lençol. O chão fofo e úmido torna cada passo mais difícil. Abrir caminho por entre a mata cansa. Há tempos que sinto uma sede profunda e terrível. Sede maldita.

Lembro que tu prometeste uma vez que nunca me abandonaria. “Sempre estarei contigo, nunca te deixarei”, sim, eu me lembro. Deve ser verdade, porque nesse momento sinto tua presença, mas, ainda que cada pedaço do meu corpo grite seu nome, tu não estás comigo.

Lembro daqueles tempos, em que todos os dias eu lhe bebia, hialinas gotas inebriantes em um cálice de prata, e assim trazia mais um pouco de ti junto comigo, enquanto mais outro pedaço de mim se esvaía. E do teu corpo esguio e delicado, fonte bela e pura do mais precioso elixir, que me envolvia tão tenra e plenamente. Tudo isso, tudo o que se foi, agora é lágrima presa em meu olho.

Tu me confundias, me iludias, mudavas. Mudavas, parecias acompanhar a Lua. Ah, estranhos dias aqueles foram. Às vezes eras fria, fechada em seu próprio mundo, tão difícil de se convencer que te diria intransponível. Outras vezes eras distante, aérea, tão presa em seus próprios devaneios que se escondias do meu olhar. Eu preferia quando tu eras... tu mesma. Envolvente, aconchegante, limpavas toda a sujeira e feiúra que se acumulava a cada segundo longe de ti. Mesmo quando te fazias intragável, ou causava feridas que ardiam como sal, era assim que eu te gostava e adorava e amava mais. Mas agora isso não importa. Cá estou, preso neste labirinto de folhas e galhos. E com essa sede terrível. 

Agora vejo ao longe um lago no meio de uma clareira, cobertura de safira brilhando ao luar. Me abaixo para chegar mais perto do lago, e vejo tua imagem boiando no espelho d’água, aparecendo e sumindo entre as suaves ondas, junto com meu reflexo. Olho e olho e olho o espelho d'água, o tempo para. Abro as mãos formando uma concha para beber um pouco de água. A sede não passa. Tua promessa... estarás comigo? Chegue mais perto... mais, mais e mais perto.Já quase posso te tocar. Uma – minha – Lady Of The Dancing Water. Por um momento tudo fica escuro. Mergulho... abro os olhos? Não preciso, sei que estás comigo agora. A sede passou, nunca mais virá. Não respiro mais. Para sempre estarei contigo. 

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Morangos


Noite tardia, as luzes ao redor já tinham se apagado e a vizinhança dormia silenciosa sem saber do que se passava lá fora – o que quer que fosse. O ar se enchia de uma paz morna que de tão rotineira e carregada há tempos se acumulava nos cantos das paredes do apartamento.

Escolhi um filme para relaxar, e me acomodei na poltrona confortável e ainda sem mofo. Mas faltava alguma coisa. Fui na geladeira e vi uma caixinha de morangos frescos comprada ainda no dia anterior. Já com os morangos pela metade. "Não se respeita mais um dia de descanso nessa casa". Peguei o resto e sentei para ver o filme.

Já falei que o morango é minha fruta favorita? Não? Enfim... Fingi que estava apreciando o filme com mais atenção - As Horas, realmente é bom - para poder comer o mais lentamente possível. Cada pequeno morango se estendendo por dois, cinco, dez minutos, seu gosto doce e rubro se estendendo longamente. Mesmo tendo apenas a televisão como iluminação, percebi que meus dedos já se cobriam de um líquido vermelho. Um pensamento me veio à cabeça, e cheirei os dedos suavemente. Campos, campos inteiros de morangos vermelho-sangue em essência. Me indaguei como não tinha tido aquela ideia brilhante antes. De novo... o aroma me entorpecia doce e infantilmente. Terminei o filme e fui dormir. Lavei minhas mãos só o suficiente.

Acordei de manhã cedo e estiquei os dedos para desligar o infeliz despertador. Os dedos... será? Ainda um pouco vermelhos nas pontas... existe um chance. Passei o nariz levemente. Pouco, quase nada. Foi com morangos que percebi que as coisas boas sempre acabam um dia.

Era Uma Vez...

Com uma voz que beirava o desespero e um andar vacilante, a menina disse “Eu não quero brincar sozinha”, e resumiu assim toda a existência de um filho único. Agora a pobre menina está tão sozinha como quando estava no útero da mãe, quando nem imaginava que a vida pudesse ser tão... difícil – mesmo ela ainda sendo fácil, por enquanto, ou quando os pais brigam e ela não tem onde ou com quem se esconder. E nem tudo passa entre o começo e o fim de um daqueles filmes com cara de rotina que ela já conhece par couer.

Mas, mas... por que os adultos precisam complicar tanto as coisas? Por que a mãe parece tão distante e tão cansada às vezes? Por que o pai fica tão concentrado na televisão de vez em quando? Por que o irmão insiste em ler esse livro? Por quê?

Não adianta, ela não saberia o que fazer com um porquê. Como quando ela vê uma pequena borboleta a voar no parque, tentaria trazê-lo para perto, segurá-lo, possuí-lo, mas depois perceberia que não pode entendê-lo. Chegará o dia em que ela entenderá o porquê, mas nesse momento já terá percebido que todos precisam de um pouco de solidão às vezes, e a vida seguirá seu curso. Mas ela ainda queria um irmãozinho, de vez em quando.

Desalento

Chego em casa. Deixo a mochila em um canto. Mesmo assim, não consigo tirar o peso de minhas costas. Que peso é esse? Em certos momentos, eu sinceramente não sei.

Aperto o ‘Play’, e o aparelho de som faz os graves e agudos começarem a ecoar pelas paredes. Peço a ele que não pare. Os sons de alguma forma ajudam a preencher um vazio enorme. E o silêncio é insuportável, esmagador. O silêncio me traz para mais perto de mim mesmo. O som me passa a voz rouca e profunda de Janis Joplin, a afrociberdelia de Chico Science, a energia híbrida e pulsante do Led Zeppelin, as letras (prefiro não descrevê-las) de Chico Buarque, a simplicidade moderna e elétrica dos Strokes, entre tantos outros.

Algum leitor mais atento pode indagar como é possível se gostar de coisas tão diferentes. Pergunto a esse leitor: “Quantas faces tu tens? Quantos tantos ‘eus’ dentro de um mesmo ser?”. Parafraseando Clarice Lispector: “Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma para sempre”. Mesmo que alguns se esforcem muito para negar, somos todos diferentes. E mesmo que sejamos levados a comer as mesmas comidas, pensar as mesmas idéias, vestir as mesmas roupas, ouvir os mesmos sons, ainda somos todos diferentes. 


Descobri qual era o peso que me afligia. Meu peso é a semelhança entre nós. Somos cercados por ilusões, e perseguidos por uma constante sensação de falta. Sempre sentimos falta de alguma coisa, mesmo não sabendo exatamente o quê ou o porquê. 

Um dia desses um vizinho veio me perguntar “Tudo bem?”. Sorri dissimuladamente e menti (ou será que apenas omiti?): “Tudo”. Todos mentem. Afinal, somos reféns das aparências. Mas a pior mentira é a ilusão. Se iludir é mentir para si mesmo.


Quando crianças, já vivemos num mundo de sonho e ilusão. Acreditamos na existência das mais absurdas entidades mágicas e folclóricas, e que o mundo não é tão hostil como os adultos insistem em dizer. Com o crescimento vêm outras ilusões, cada vez maiores. Nos tornamos sonâmbulos, vagando pelo mundo em um sonho perene. Sempre achei estranha a palavra da língua inglesa para ‘pesadelo’: nightmare. Night (noite)... Eles se esquecem dos pesadelos diurnos. O pior pesadelo de uma pessoa é a desilusão. E essa não tem hora para chegar.

Perdido em devaneios, me pego sentindo como se estivesse preso em um enorme e invisível elevador. E como todo elevador que se preze, ele carrega as conversas sem objetivo, o desconforto, um princípio de claustrofobia, a sensação de tempo desperdiçado. E o pior é que não sei para onde esse elevador está me levando.  Isso me causa um medo terrível. Ouvi falar que as pessoas têm medo do que desconhecem. Pode ser isso.  E o elevador parece ser panorâmico. Enquanto me sufoco com a atmosfera controlada de dentro, vejo do lado de fora imagens aleatórias de outros ares, outros tempos. 


Tempos que não voltam mais. E com essas imagens vem aquela nostalgia, me lembrando do que me falta. Falta-me a visão do teu sorriso sincero. Falta-me o cheiro envolvente da maresia. Falta-me a doçura dos teus lábios. Falta-me o barulho do vento desbravando meus ouvidos. Falta-me o aconchego do teu cálido corpo. Falta-me sentido para tudo.

E são nesses momentos de ausência que percebo que odeio os relógios. Metódicos, incansáveis, frios... malditos. Nunca me deixam ficar perto de ti o tempo suficiente. E ainda fazem os momentos em que você não está comigo terem a duração de meses, anos, séculos. E acompanhado dos relógios desvaneço.

Começo a duvidar da existência de minha Lua particular. Os ciclos e fases passam, e a maré parece não mudar. Continuo preso no elevador. Procuro um meio de dar fim a esse desalento. Sei exatamente o que quero, só não posso dizer quando vou consegui-lo. Quer dizer, não sei exatamente. Não saber exatamente o que quero é um modo de me preservar. Querer demais traz a decepção, o descontentamento. Por isso meus desejos mais profundos são como o Sol em um dia chuvoso: continuam tão fortes e imaculados como sempre, mas estão escondidos, encobertos, parecem estar longe de sua plenitude passada. Escondo-os, em um lugar onde nem eu mesmo possa encontrá-los. Enquanto isso os relógios correm. Tic Tac.




Soundtrack:
 
 
 

 

1) Desalento - Chico Buarque (Letra)
2) How To Disappear Completely - Radiohead (Letra)
3) Time - Pink Floyd (Letra)