terça-feira, outubro 18, 2011

O Filme Das Sete Mulheres ou Tarantino, O Podólatra




De novo me afasto da tendência original do blog, mas senti uma súbita vontade de fazer uma análise do filme 'À Prova de Morte' (Death Proof, 2007), que recebe pouca atenção se comparado a outras obras do cultuado diretor/roteirista/ator/produtor Quentin Tarantino, como 'Bastardos Inglórios' e 'Pulp Fiction', só pra começar. Uma prova disso é o fato de ‘À Prova De Morte’ só ter sido lançado oficialmente no Brasil em julho de 2010, alavancado pelo sucesso de ‘Bastardos Inglórios’. Vi o filme pela primeira vez em julho desse ano, e ele instantaneamente se tornou um dos meus favoritos, me deixando com um sorriso que poucas pessoas já viram. Decidi vê-lo de novo hoje, e o resultado é o texto que vem a seguir.
Antes de qualquer coisa, é bom avisar que esse texto está cheio dos infames spoilers. Chega a ser óbvio, mas é sempre bom lembrar. Para aquele que não viu o filme, eu recomendaria vê-lo primeiro e depois (talvez) ler o texto, para comparar opiniões ou coisa assim. Também vou dizendo que, por abordar noções básicas de machismo/feminismo no texto, vou acabar me contradizendo ou mostrando meus próprios preconceitos. Se isso acontecer... bem, pelo menos eu previ a desgraça.


PARTE 1 (Austin, Texas)

Desde o primeiro quadro, notam-se problemas na imagem que parecem bem incomuns para um filme feito em 2007, como rabiscos ocasionais, pontos pretos e coisas de que eu não tenho vocabulário para falar, o que dá ao filme ares de produção de baixo orçamento e por que não antiga, e também serve como forma de referência aos filmes que serviram de inspiração para esse (o IMDB.com me diz que o filme foi fisicamente – e não digitalmente - arranhado para parecer mais sujo). Outro fato interessante é, nos créditos iniciais, a aparição de outro título, que poderia muito bem ser de um filme de carros dos anos 70. Pode-se ver por um instante 'Quentin Tarantino's Thunderbird', e até ouve-se um efeito de som que realça a aparição do título "alternativo", antes de o nome 'Death Proof' aparecer rapidamente sobre um fundo preto. De acordo com Robert Rodríguez, diretor, parceiro e amigo de longa data de Tarantino que ajudou a criar o título, Tarantino tinha o título na cabeça, ou seja, o título “alternativo” foi intencionalmente colocado lá.


 

O filme começa com... pés. Sim, pés! Pés femininos com unhas pintadas de um vermelho vibrante. Essa é só uma das várias cenas envolvendo pés femininos... Tarantino, o senhor é podólatra? Se não for, me desculpe. Podem ser encontrados mais momentos relacionados a pés na filmografia de Tarantino, como a cena em que a personagem de Uma Thurman tenta mover os pés dentro do carro em Kill Bill Vol.1, de novo Uma Thurman dançando descalça em Pulp Fiction e as japonesas tocando ‘Woo Hoo’ descalças em Kill Bill Vol.1.Baseando-se nas cenas seguintes, pode-se supor que sejam os pés de Jungle Julia (interpretada por Sidney Poitier). Depois desse primeiro quadro, aparece Jungle Julia em casa, e a câmera a segue (principalmente seus pés por uns segundos) até o sofá, onde ela estira as pernas, assim como a atriz (que eu desconheço) que aparece num quadro enorme pendurado na parede, e fuma um baseado. Também nas primeiras cenas, a câmera também segue os passos de Arlene (interpretada por Vanessa Ferlito), se focando nos seus pés (não é culpa minha) e nas pernas enquanto ela corre em direção ao banheiro. Na cena seguinte, Jungle Julia, Arlene e Shanna (interpretada por Jordan Ladd) estão no carro conversando, enquanto (pasmem!) Jungle Julia estende as pernas para fora da janela. Enquanto passeiam, vêem algumas vezes outdoors com Jungle Julia, que é DJ de uma rádio local, e é mostrada com as pernas bem realçadas, digamos assim.


Nesse primeiro diálogo entre as três garotas, é possível notar pequenos sinais de independência nelas. Arlene conta que na noite anterior, depois de dar uns amassos (na falta de expressão melhor) no... parceiro no sofá de casa, com ela sentada de pernas abertas sobre ele (ou seja, no topo), o mandou voltar para casa para que ela pudesse dormir, recusando (e prevendo) um pedido de dormir (realmente dormir) na mesma cama. Ela também fala de como ele protestou, usando um verbo que está relacionado a protestos em que a pessoa parece choramingar: whine. Por sua vez, Shanna (Banana) ressalta que no dia seguinte as três irão para a casa de lago do pai, onde homens (que não o próprio pai, que gosta de espiar) não são permitidos. Nenhuma das três se mostra contra tal restrição. E, para terminar, Jungle Julia reclama veemente sobre a idéia de pedir para os homens trazerem maconha, dizendo que não quer depender deles. Quando Shanna sugere conseguir a droga com Lanna Frank (ou seja, uma mulher), Jungle Julia fala: “Essa foi a melhor idéia que você teve no dia inteiro”.
Então aparece pela primeira vez com destaque o carro “à prova de morte” de Stuntman Mike (interpretado por Kurt Russell), que será tão importante para o filme, passando meio que por acaso pela rua e vigiando o trio. Antes disso, o carro foi mostrado logo na segunda cena, através de uma câmera colocada logo atrás no capô, enquanto o veículo corria pela estrada. Ele também foi mostrado discretamente seguindo o carro do trio de meninas, enquanto elas passavam por um outdoor. Arlene percebe algo estranho no carro e no seu motorista, que a encaram (o próprio ronco do motor do carro como forma de intimidação), mas depois de alguns segundos Stuntman Mike parece seguir seu caminho.
Na cena no Guero’s, Tarantino segue sua rotina de usar várias referências nos seus filmes, o que fica claro pelas paredes do bar, repletas de pôsteres de filmes antigos e pouco conhecidos. Enquanto as garotas tomam margueritas, Jungle Julia fala sobre como disse na rádio que uma amiga sexy em visita à cidade e apelidada de Butterfly (realmente não consegui tirar nada desse apelido) daria uma lap dance aos que seguissem certo ritual. Mais sobre isso depois. Também há uma pequena discussão sobre o bumbum de Jungle Julia, tido por Arlene como uma bunda (sim, bunda) tão grande que já não se equivale a uma bunda de uma mulher negra, numa referência a um diálogo do filme ‘Fogo Contra Fogo’ (Heat). Enquanto Al Pacino grita “She’s got a GREAT ASS!”, Arlene fala “She’s got a BIG ASS!”. Ao ouvir isso, Jungle Julia se gaba das marcas de dentes na sua bunda, tanto de homens negros quanto brancos, numa declaração que pode lembrar as típicas conversas entre homens nas quais eles expõem suas proezas sexuais. Em mais uma ação que provavelmente é mais freqüente entre homens, elas saem do bar bêbadas, gritando e caindo de embriaguez. As três também são mostradas fumando desde o começo do filme, em várias cenas.


Na saída do bar, é mostrado Stuntman Mike, encoberto pelas sombras e sorrindo da cena que as três bêbadas fazem. Ele é mostrado pela primeira vez num close, enquanto coloca colírio nos olhos (também não consegui tirar nada disso). Também são mostradas fotos das três garotas, tiradas pelo próprio Mike, dentro do carro. Assim é mostrado que Stuntman Mike é (entre outras coisas; mais sobre os fetiches desse personagem depois) um voyeur, que sente prazer em observar suas vítimas por um tempo e admirar suas fotos antes de atacá-las.


O clima muda, e agora estamos no Texas Chili Parlor, um bar de jukebox generosa, chefiado por Warren (interpretado pelo próprio Tarantino). Depois de algumas doses, Arlene vai para o lado de fora do bar, onde cai uma tempestade, para fumar. Seu parceiro, Nate (interpretado por Omar Doom, também presente em ‘Bastardos Inglórios’, assim como Eli Roth, que interpreta Dov, pretendente de Shanna) aparece e sugere que eles dêem uns amassos no seu carro, se protegendo com um guarda-chuva rosa. Na verdade, ele faz o pedido parecendo uma criança de cinco anos pedindo por doce, e apesar de o ato de oferecer um guarda-chuva para que a parceira não se molhe parecer digno de um cavalheiro, o fato de ele só fazer aquilo para poder dar uns amassos nela antes da viagem e o guarda-chuva rosa tiram-lhe essa imagem. Arlene, por sua vez, ordena que ele pare de choramingar (de novo o verbo ‘whine’) e de implorar, e estabelece que eles só ficarão no carro por seis minutos, e que Nate tem duas tarefas: beijar bem e ter certeza de que o cabelo dela não fique molhado. Nate, claro, aceita tudo sem objeção.


Ainda no bar, Stuntman Mike é mostrado claramente pela primeira vez, usando uma jaqueta de dublê e comendo nachos com as mãos. Ele oferece uma carona a Pam (interpretada por Rose McGowan), e o jeito como ele dá o tom da conversa não dá a transparecer que ele é, na verdade, um maníaco. Enquanto isso, Stuntman Mike continua fazendo o papel de voyeur e observa o trio. Mas ele não é o único a observá-las. Tarantino, conduzindo a câmera de um jeito que lhe é peculiar, muitas vezes com o uso de câmera de mão, faz questão de filmar o corpo de suas belas sem nenhum pudor durante todo o filme. São tantos exemplos que é até inútil colocá-los aqui. Não seria Tarantino (e outros diretores) também um voyeur, sentindo prazer em encher seu(s) filme(s) de coxas, cabelos, bundas (ainda que escondidas) e, por que não, pés? Estaria ele contribuindo para a objetificação do corpo feminino, tão banalizada nos dias de hoje? Talvez sim, mas a forma como ele faz isso (assumindo que sim) é diferente da normal. As mulheres (e seus corpos, realçados por shorts curtíssimos e camisas apertadas, como se isso não fosse óbvio) também são mostradas como objeto de desejo, mas não como ‘sexo frágil’, ou como personagens que só realçam a masculinidade dos heróis (007?). Em ‘À Prova de Morte’, as mulheres ganham bastante destaque, e, quando tratadas com violência, atacam e se vingam furiosamente.


Na cena seguinte, seguindo a tendência, Jungle Julia é mostrada de pernas estiradas na varanda do bar, o que faz seus pés e suas pernas ficarem repletos de gotas de chuva. Junto com as outras garotas e seus parceiros, ela continua a bebedeira, e divide a maconha, trazida por Lanna Frank. Stuntman Mike se apresenta, falando de um jeito inseguro, perguntando se ela era realmente a garota dos outdoors. Julia o acha estranho. De volta ao bar, Mike percebe que ninguém conhece os filmes em que ele diz ter trabalhado, o que o deixa com cara de poucos amigos. Enquanto isso, Arlene parece transtornada pelo fato de nenhum homem tê-la abordado à procura da já-mencionada lap dance. Percebendo isso, Stuntman Mike faz o ritual e exige uma dança. Assustada com o carro à prova de morte e com suspeitas de que ele as seguia (Mike nega), Arlene, a princípio, mente que já tinha feito uma dança mais cedo e se recusa a dançar para Mike. Mike ameaça colocá-la no seu livrinho sob a categoria de covarde (chickenshit – merda de galinha), o que faz Arlene mudar de idéia. Também é digna de nota a reação de Jungle Julia a Arlene ter aceitado dançar para Stuntman Mike. Ela diz: “Que parte de ‘Meio fofo, meio gostoso, meio sexy, histericamente engraçado mas não de um jeito (visualmente falando) engraçado com quem você poderia transar’ você não entendeu?” (ela havia usado essa descrição mais cedo para tranqüilizar Arlene sobre a idéia de dançar para um desconhecido). Arlene só sorri.
O caso da lap dance é um a ser discutido. Primeiro, por causa da denominação. Que eu saiba não existe uma tradução direta para o termo em português, até porque me parece que seja um tipo de dança mais comum nos Estados Unidos (a cultura americana invade o mundo de tal modo que eu não posso falar com propriedade sobre outros países nesse momento). Também não pode ser traduzida como striptease, termo apropriado pelos brasileiros, já que um striptease, ainda que também seja um tipo de dança sensual, envolve a retirada de roupas, enquanto na lap dance isso não é obrigatório. A lap dance, pelo menos a meu ver, está associada à imagem das prostitutas, pagas para realizar tal dança que envolve sentar no colo do homem (ou mulher, quem sabe?). Ou, ainda por essa associação, uma forma de subverter o objeto de desejo de Mike à sua vontade antes da matança. Um sinal da idéia de superioridade de Mike no momento está no fato de Arlene ficar de joelhos em alguns momentos da dança, e isso filmado por uma perspectiva que realça a diferença de altura entre os dois.
De qualquer modo, a lap dance de ‘À Prova de Morte’ é a cena de dança mais sensual que eu já vi em um filme. Arlene usa e abusa de todo o seu sex appeal, se exibindo para o único homem que requisitou os seus encantos (tirando, é claro, seu ‘parceiro’). Ela sorri, como se sentir-se desejada (e segura, já que não transaria com Mike) fosse extremamente prazeroso. A dança é sincronizada com a música ‘Down In Mexico’, do grupo The Coasters. Na letra, um homem está num bar (digamos assim) mexicano, e fala de uma mulher que entrou de repente no bar (nessa hora o ritmo da música acelera, o ritmo da dança acelera, e o ângulo de câmera também muda) e dançou com ele ao som de uma música latina, de um jeito que ele nunca tinha visto. Tarantino, por sua vez, alterna a câmera entre a visão de Mike, uma visão mais ampla, como se vinda da porta do bar, e closes em alguns momentos, endeusando ainda mais sua atriz. Outro fator interessante é o fato de que, das várias pessoas que assistem a dança no bar (Jungle Julia e Shanna Banana não se incluem nesse grupo), as que parecem mais animadas são duas mulheres orientais, que entraram de mãos dadas no bar, o que é mostrado brevemente antes da câmera se voltar ao trio. Ao final, trinta segundos antes do fim da música, há um corte brusco e intencionalmente malfeito, e de repente estamos do lado de fora do bar, e a câmera mostra todos se preparando para partir. Agora eu pergunto: POR QUEEEEEEEEEE? POOOR QUEEEEEE, SR. TARANTINO?! Isso pode até realçar a imagem do filme como um de baixo orçamento, mas era realmente necessário?


 Continuando... Arlene, Jungle Julia, Shanna Banana e Lanna Frank se preparam pra ir embora, e Stuntman Mike também vai, levando Pam de carona. Enquanto Mike e Pam se dirigem ao carro ‘à prova de morte’, Arlene e Jungle Julia brincam sobre a possibilidade de Mike e Pam transarem. Em outras palavras, de Stuntman Mike estuprar Pam! Pam, obviamente, nega a possibilidade de transar com Mike. De fato, o que acontece com Pam é bem pior que isso. Ela ainda cogita desistir da carona ao ver o “assustador” carro de Mike, com um adesivo de caveira enorme no capô, mas, apesar de ficar dentro de uma caixa e de sentar num tamborete, na falta de denominação melhor, ela acaba aceitando. Mike, ao falar dos tempos em que não havia efeitos especiais para criar cenas de batidas a partir do computador, menciona “os dias de Vanishing Point”, em que carros reais batiam em carros reais, com pessoas realmente burras dirigindo eles. Esse filme, certamente um dos que serviram de inspiração para a criação de ‘Death Proof’, será lembrado mais tarde. E, num exemplo clássico de ironia de Tarantino, Mike fala que a caixa na qual Pam é colocada é usada às vezes por diretores que querem colocar câmeras no carro. De fato, Tarantino usa câmera(s) dentro do carro para filmar a cena seguinte.
Antes de entrar no carro, Stuntman Mike observa o carro das garotas indo embora sob muita gritaria, e sorri ironicamente. Obviamente, ele segue o carro delas, mesmo não sendo esse o caminho de Pam. Ela, coitada, não seria aquela a impedir Mike. Sem nenhuma segurança (o carro só é à prova de morte para o motorista), Pam é arremessada contra o metal do carro até morrer. Retomando, o assassinato é filmado, em sua maioria, por câmeras posicionadas dentro do carro. Com Pam morta, Stuntman Mike vê as fotos de Jungle Julia, Arlene e Shanna pela última vez, e as joga fora. Sua ‘etapa voyeur’ tinha terminado, e Mike parte para a etapa mais divertida.
Enquanto Mike assassinava Pam, as outras garotas partem rumo à casa do lago, quer dizer, a morte. Jungle Julia, como sempre, estende uma das pernas para fora da janela do carro. Ela pede a um amigo da rádio que toque ‘Hold Tight’, de Dave Dee, Dozy, Beaky, Mitch & Tich (sim, isso é o nome de uma banda). Ironicamente, na letra um homem pede à garota que segure firme. Com ou sem cinto (pelo que eu vi, só Arlene usava cinto), elas não estavam firmes o suficiente, e nem poderiam estar. Shanna, se inclinando em direção a Julia (no banco da frente), é arremessada com violência para frente, através da janela de vidro. Por ironia do destino, quer dizer, de Tarantino, a perna de Jungle Julia que estava para fora do carro é decepada e jogada longe (não tenho certeza se o mesmo acontece com a outra perna). Lanna Frank recebe o impacto de frente e o pára-brisas se quebra sobre ela. Arlene tem o rosto - mostrado em close como se ela se preparasse para a morte fechando os olhos - e a cabeça dilacerados pelo pneu do carro de Mike. O carro de Mike capota várias vezes, e parece perdido. Mike, obviamente, sobrevive, com alguns ossos quebrados. E, como todo bom psicopata de filme, escapa ileso de ir pra prisão. Um xerife local, ao explicar ao filho o porquê de tudo aquilo, sugere que essa seja a forma de Mike de se excitar/satisfazer sexualmente. De fato, não pode haver ação mais machista que se utilizar não só do corpo de mulheres, mas da vida delas para se satisfazer.



PARTE 2 (Lebanon, Tennessee – na verdade filmada em Buelleton, Califórnia) (14 meses depois)

Começamos, ao som de ‘It’s So Easy’, de Willie DeVille, num espaço para loja de conveniência, daquelas de beira-de-estrada. Outro muscle car entra em cena, desta vez o de Kim (interpretada por Tracie Thoms), que por coincidência também é dublê (esta realmente trabalha). ENTÃO, DO NADA, O FILME FICA PRETO E BRANCO. Esta eu realmente não entendi. O mais estranho é que o quadro continua o mesmo (pelo menos parece continuar), o que sugere que isso seja um efeito de computador. Mas pra quê?


De qualquer jeito, de novo Stuntman Mike aparece, fumando pacificamente em seu carro, quando avista um novo trio de garotas. Novamente, a primeira coisa que vemos de uma personagem, desta vez Abernathy (interpretada por Rosario Dawson), são os pés. Lee (interpretada por Mary Elizabeth Winstead) completa o trio. Stuntman Mike, ao avistar três garotas andando pela estrada em um muscle car, não resiste e a ‘etapa voyeur’ começa novamente. Stuntman Mike, com o carro parado a apenas alguns metros das garotas, ouve a conversa (assim como ouviu a conversa entre Pam e Warren na cena do bar) entre Lee e Kim. Em uma referência ao próprio filme, Lee fala que deu uns amassos (não consigo evitar) no seu parceiro da vez por dez minutos, e depois o mandou para o quarto dele, lembrando Arlene despachando Nate no primeiro diálogo entre o trio inicial. Mais tarde, em outra referência, Lee canta no carro (ao melhor estilo chuveiro) ‘Baby, It’s You’, de Smith, a primeira música que Julia dança no Texas Chili Parlor. Outra referência é um outdoor acima da loja de conveniência, no qual está escrito ‘POTHEADS’ (maconheiros). No banco de trás, Abernathy tenta dormir com os pés estirados para fora da janela. É possível ver que suas unhas estão pintadas de uma cor forte, ainda que seja impossível determinar a cor. Stuntman Mike ousa tocar seus pés, fingindo estar procurando sua chave, e depois vai embora fazendo o máximo de barulho e fumaça possíveis. Ao ver a saída em estilo de Mike, Lee ousa brincar com o maior motivo de ostentação de masculinidade por parte dos próprios homens e fala ‘Pau pequeno’ para Abernathy, que ri. Abernathy, a exemplo das outras, sai do carro para fumar, e por uns instantes vê o carro de Stuntman Mike a vigiando, antes que ele desapareça de novo. Então, NOVAMENTE DO NADA, AS CORES DO FILME VOLTAM. Enfim... as cores voltam quando Lee está comprando um refrigerante. A anormalidade disso é que ela está vestida de animadora de torcida/colegial (uma das fantasias sexuais mais clichês), com sua saia rodada curtíssima. A lata cai, e por um momento é possível ver alguns centímetros da calcinha de Lee por baixo da saia enquanto ela se abaixa pra pegar a lata. Obviamente, tudo isso é intencional. E em mais uma referência, o celular de Abernathy toca, e o que ouvimos é o assobio da personagem de Daryl Hannah durante a cena do hospital de ‘Kill Bill Vol.1’.


Kim, Lee e Abernathy vão buscar a dublê Zöe Bell (interpretando ela mesma, veja só!) no aeroporto. Enquanto isso, Stuntman Mike, como de costume, tira fotos de seus alvos. Em mais uma cena de diálogo em carros, o quarteto (trio+quarteto = explicação do título do texto) conversa alegremente. O assunto da vez, claro, são os homens. Primeiro Lee, que apresenta a perversão do seu parceiro atual: vê-la urinar. Depois Kim, que, ainda que não admita, é tida pelas outras como uma ladra de namorados. Não que homens roubem namorados uns dos outros, mas o ato de uma pessoa levar outra ao adultério me parece ser mais aceito socialmente quando ocorre de um homem ‘roubar’ a namorada do outro. Poderia até entrar na discussão do uso do termo ‘roubar’, como se namoradas fossem propriedades dos namorados, mas isso não é importante aqui. A bola passa para Abernathy, que, em mais uma referência, fala que o diretor do filme no qual ela trabalha (seu pretendente, digamos assim) transou com a stand-in de Daryl Hannah, já mencionada no texto. Abernathy então diz que não transou com ele em meses por não aceitar a idéia de se tornar uma das ‘regulares’ dele, com as quais ele transa-mas-não-namora há seis anos. Abernathy prefere manter seu respeito ao decidir não transar com seu pretendente, evitando o abuso+descarte de um homem com várias parceiras, mas as outras a aconselham a abrir mão disso o mais rápido possível, colocando o ato de ‘chupar’ o parceiro/namorado/pretendente quase como uma obrigação. Lee sugere se tornar ‘safada’ de repente, para surpreendê-lo e, por que não, abusar um pouco do homem também e/ou tomar o controle da situação. Abernathy sorri.
Uma nova cena começa, dessa vez com as quatro almoçando num restaurante, enquanto a câmera de Tarantino gira em torno delas. Em um momento da conversa, é revelado que Kim carrega uma arma, apesar de não ter permissão para isso. Abernathy diz que aquilo a torna mais propensa a tomar um tiro, mas Kim responde que carrega a arma para se defender de estupradores. De fato, aquela arma seria mais tarde usada como forma de defesa não só dela, mas também das outras contra Stuntman Mike, que ainda não seja um estuprador, pode ser considerado, no mínimo, um estuprador de mulheres. Depois, ao mencionar o filme ‘Vanishing Point’, Kim diz: “A maioria das garotas não assistiria/conhece Vanishing Point”, falando que ela e Zöe assistiram por serem viciadas em carros, e que “Vocês todas cresceram assistindo aquela merda de ‘A Garota de Rosa Shocking’ (Pretty In Pink, 1986)”. Assim, mostra o estereótipo que opõem filmes como ‘Pretty In Pink’ (de garotas) e ‘Vanishing Point’ (de garotos), que não deixam de ser estereotipados por si próprios.
Na próxima cena, Zöe vai atrás do seu Dodge Challenger branco de 1970, o mesmo do filme ‘Vanishing Point’. Quando Zöe conversa com o vendedor do carro, a câmera fica dentro do Challenger, como se numa previsão do que está por vir. A intenção de Zöe, na verdade, é “brincar” de ship’s mast com o Challenger nos Estados Unidos, e assim, realizar um desejo antigo. Ela consegue o que quer, mas para isso Lee tem que ficar com o vendedor (grande, gordo e feio) enquanto Zöe, Kim e Abernathy vão dar uma volta. Ao convencer o vendedor a ficar a sós com Lee, Abernathy realça a sua roupa de animadora de torcida, e deixa a sugerir que ela é uma atriz pornô. O vendedor, claro, não deixa a oportunidade passar, e mais uma vez, garotas deixam outra sob a ameaça de estupro e não fazem nada para impedir, e pelo contrário, riem. Lee, não sabendo do acordo porque estava dormindo, acorda e se depara com o homem, com cara de assustada. O destino de Lee é desconhecido.


Observando três garotas dirigindo um Challenger pela estrada, estando uma delas presa ao capô, o voyeur não resiste e parte para a ação. Em vez de uma só batida para matar todas de uma vez, Mike prefere perseguir o Challenger e bater nele repetidamente, o que quase custa a vida de Zöe. Tarantino, se utilizando de todo o aparato possível, como um terceiro carro com uma câmera filmando e câmeras dentro dos carros, nos dá uma emocionante cena de perseguição. Depois de um tempo, os dois carros param na estrada, e Mike ousa sair do carro e brincar com suas vítimas. Sua imprudência (não só em fazer isso, como em começar a perseguição sem conhecer bem os alvos) custa caro, e Kim atira no braço dele. Revigoradas depois de perceber que Zöe não está machucada, as garotas correm atrás de vingança. Stuntman Mike, seriamente ferido e berrando de dor, mal consegue dirigir, e é facilmente alcançado pelas garotas. Kim até grita, em meio à empolgação, “Eu sou a mais tarada/excitada (horniest) na estrada!”, entre outros insultos, o que sugere que as garotas também tiram prazer daquele ato. Os dois carros ficam lado-a-lado na estrada, e Stuntman Mike, depois de toda a exibição de masculinidade, tenta se desculpar pela “brincadeira”, pedido que é ironizado pelas garotas, que riem e quebram o carro dele ainda mais. A perseguição ao carro de Stuntman Mike continua, até que o carro é atingido com força na traseira e capota. Mesmo com Mike berrando por ajuda, as garotas não demonstram piedade. Tarantino as filma se dirigindo ao carro de Stuntman Mike por trás, focando primeiro em Zöe – da barriga para baixo – e depois em Kim e Abby – que levanta a ‘calça’ até a metade da coxa, se mantendo abaixo dos seus ombros, com as camisas rosas de Zöe e Abby reforçando a imagem de que elas são, realmente, mulheres. Elas o cercam e espancam o maníaco com brutalidade, numa cena cuja violência é aumentada com efeitos de som. Zöe chuta Stuntman Mike, ele vai ao chão. A câmera mostra uma tomada mais aberta, com Mike no chão, e as garotas levantando os braços para o céu de alegria, em referência aos filmes B de femsploitation dos anos 70 em que mulheres se vingam de um jeito violento e até exagerado, numa tentativa de se opor a filmes em que as mulheres eram exploradas com certa misogenia. As vítimas de Mike, e por que não as mulheres em geral, foram vingadas. A música é gloriosa, de comemoração. THE END. Há um corte brusco, e malfeito, e então podemos ler ‘Written And Directed by QUENTIN TARANTINO’.


Nos créditos, mais surpresas. Há uma continuação de alguns segundos da tomada final, com Abby aplicando a Mike um chute no rosto digno de filmes de kung fu. Os créditos têm como trilha sonora a música ‘Chick Habbit’, da banda An April March, que é cantada por uma mulher. Na letra, uma mulher exige a um homem para largar o ‘chick (gíria usada para se falar de garotas/mulheres) habbit’, que eu interpreto como o hábito de maltratar as mulheres – ela fala “uma garota não é uma tônica ou uma pílula”, se não quiser ficar sozinho, ou pior, ser “cuspido no olho” ou “cortado em dois”. Enquanto os créditos passam, são mostrados vídeos curtos e fotos de mulheres, sendo que a maioria parece ser antigo (dos anos 70, talvez?). Alguns sugerem que essas sejam outras vítimas de Stuntman Mike – Arlene também aparece - , mas o fato de essas mulheres aparecerem em vídeos e fotos que parecem ser bem pessoais (as fotos de Mike eram tiradas de longe, como as de um espião) descarta essa possibilidade. Sem falar que são mostradas algumas manequins! Acho difícil Mike ter atropelado manequins. Enfim, esse é outro detalhe desse fascinante filme que é um completo mistério para mim.



Acho que por hoje foi suficiente. Admito que perdi o controle, mas no fim acho que valeu a pena. Se você conseguiu ler até aqui, parabéns, você certamente merece um prêmio. Tenho a impressão de ter errado em colocar alguns termos mais específicos do cinema e de ter cometido alguns erros ortográficos, mas isso pode ser corrigido depois. Até por que eu é que não vou revisar essas nove páginas! Também gostaria de ressaltar que para que esse texto fosse escrito foram bastante úteis as informações do IMDB.com, como os nomes de todos os atores/atrizes e personagens e mais informações sobre os diferentes gêneros aos quais Tarantino faz referência.

Um comentário:

  1. Ótimas observações. A propósito, quanto ao destino de Lee acho bem incerto, já que o homem pensaria no carro antes de fazer algo pesado com ela. Não sei se é importante ou não o fato de Zoë e Kim terem um caso, que se percebe no legendado. Acho que a Abernathy desconfia na estrada, aliás ela é a mais foda sem dúvida. Em geral, gostei muito, parabéns.

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