quinta-feira, janeiro 20, 2011

Náiade

Estou em uma floresta densa, perdido. Olhando pra cima posso ver a Lua se esconde entre as copas das árvores, derramando calma e silenciosamente uma cortina escura sobre as terras abaixo, como uma mãe a cobrir seu filho já sonolento com um lençol. O chão fofo e úmido torna cada passo mais difícil. Abrir caminho por entre a mata cansa. Há tempos que sinto uma sede profunda e terrível. Sede maldita.

Lembro que tu prometeste uma vez que nunca me abandonaria. “Sempre estarei contigo, nunca te deixarei”, sim, eu me lembro. Deve ser verdade, porque nesse momento sinto tua presença, mas, ainda que cada pedaço do meu corpo grite seu nome, tu não estás comigo.

Lembro daqueles tempos, em que todos os dias eu lhe bebia, hialinas gotas inebriantes em um cálice de prata, e assim trazia mais um pouco de ti junto comigo, enquanto mais outro pedaço de mim se esvaía. E do teu corpo esguio e delicado, fonte bela e pura do mais precioso elixir, que me envolvia tão tenra e plenamente. Tudo isso, tudo o que se foi, agora é lágrima presa em meu olho.

Tu me confundias, me iludias, mudavas. Mudavas, parecias acompanhar a Lua. Ah, estranhos dias aqueles foram. Às vezes eras fria, fechada em seu próprio mundo, tão difícil de se convencer que te diria intransponível. Outras vezes eras distante, aérea, tão presa em seus próprios devaneios que se escondias do meu olhar. Eu preferia quando tu eras... tu mesma. Envolvente, aconchegante, limpavas toda a sujeira e feiúra que se acumulava a cada segundo longe de ti. Mesmo quando te fazias intragável, ou causava feridas que ardiam como sal, era assim que eu te gostava e adorava e amava mais. Mas agora isso não importa. Cá estou, preso neste labirinto de folhas e galhos. E com essa sede terrível. 

Agora vejo ao longe um lago no meio de uma clareira, cobertura de safira brilhando ao luar. Me abaixo para chegar mais perto do lago, e vejo tua imagem boiando no espelho d’água, aparecendo e sumindo entre as suaves ondas, junto com meu reflexo. Olho e olho e olho o espelho d'água, o tempo para. Abro as mãos formando uma concha para beber um pouco de água. A sede não passa. Tua promessa... estarás comigo? Chegue mais perto... mais, mais e mais perto.Já quase posso te tocar. Uma – minha – Lady Of The Dancing Water. Por um momento tudo fica escuro. Mergulho... abro os olhos? Não preciso, sei que estás comigo agora. A sede passou, nunca mais virá. Não respiro mais. Para sempre estarei contigo. 

quarta-feira, janeiro 19, 2011

Morangos


Noite tardia, as luzes ao redor já tinham se apagado e a vizinhança dormia silenciosa sem saber do que se passava lá fora – o que quer que fosse. O ar se enchia de uma paz morna que de tão rotineira e carregada há tempos se acumulava nos cantos das paredes do apartamento.

Escolhi um filme para relaxar, e me acomodei na poltrona confortável e ainda sem mofo. Mas faltava alguma coisa. Fui na geladeira e vi uma caixinha de morangos frescos comprada ainda no dia anterior. Já com os morangos pela metade. "Não se respeita mais um dia de descanso nessa casa". Peguei o resto e sentei para ver o filme.

Já falei que o morango é minha fruta favorita? Não? Enfim... Fingi que estava apreciando o filme com mais atenção - As Horas, realmente é bom - para poder comer o mais lentamente possível. Cada pequeno morango se estendendo por dois, cinco, dez minutos, seu gosto doce e rubro se estendendo longamente. Mesmo tendo apenas a televisão como iluminação, percebi que meus dedos já se cobriam de um líquido vermelho. Um pensamento me veio à cabeça, e cheirei os dedos suavemente. Campos, campos inteiros de morangos vermelho-sangue em essência. Me indaguei como não tinha tido aquela ideia brilhante antes. De novo... o aroma me entorpecia doce e infantilmente. Terminei o filme e fui dormir. Lavei minhas mãos só o suficiente.

Acordei de manhã cedo e estiquei os dedos para desligar o infeliz despertador. Os dedos... será? Ainda um pouco vermelhos nas pontas... existe um chance. Passei o nariz levemente. Pouco, quase nada. Foi com morangos que percebi que as coisas boas sempre acabam um dia.

Era Uma Vez...

Com uma voz que beirava o desespero e um andar vacilante, a menina disse “Eu não quero brincar sozinha”, e resumiu assim toda a existência de um filho único. Agora a pobre menina está tão sozinha como quando estava no útero da mãe, quando nem imaginava que a vida pudesse ser tão... difícil – mesmo ela ainda sendo fácil, por enquanto, ou quando os pais brigam e ela não tem onde ou com quem se esconder. E nem tudo passa entre o começo e o fim de um daqueles filmes com cara de rotina que ela já conhece par couer.

Mas, mas... por que os adultos precisam complicar tanto as coisas? Por que a mãe parece tão distante e tão cansada às vezes? Por que o pai fica tão concentrado na televisão de vez em quando? Por que o irmão insiste em ler esse livro? Por quê?

Não adianta, ela não saberia o que fazer com um porquê. Como quando ela vê uma pequena borboleta a voar no parque, tentaria trazê-lo para perto, segurá-lo, possuí-lo, mas depois perceberia que não pode entendê-lo. Chegará o dia em que ela entenderá o porquê, mas nesse momento já terá percebido que todos precisam de um pouco de solidão às vezes, e a vida seguirá seu curso. Mas ela ainda queria um irmãozinho, de vez em quando.

Desalento

Chego em casa. Deixo a mochila em um canto. Mesmo assim, não consigo tirar o peso de minhas costas. Que peso é esse? Em certos momentos, eu sinceramente não sei.

Aperto o ‘Play’, e o aparelho de som faz os graves e agudos começarem a ecoar pelas paredes. Peço a ele que não pare. Os sons de alguma forma ajudam a preencher um vazio enorme. E o silêncio é insuportável, esmagador. O silêncio me traz para mais perto de mim mesmo. O som me passa a voz rouca e profunda de Janis Joplin, a afrociberdelia de Chico Science, a energia híbrida e pulsante do Led Zeppelin, as letras (prefiro não descrevê-las) de Chico Buarque, a simplicidade moderna e elétrica dos Strokes, entre tantos outros.

Algum leitor mais atento pode indagar como é possível se gostar de coisas tão diferentes. Pergunto a esse leitor: “Quantas faces tu tens? Quantos tantos ‘eus’ dentro de um mesmo ser?”. Parafraseando Clarice Lispector: “Sou sempre eu mesma, mas com certeza não serei a mesma para sempre”. Mesmo que alguns se esforcem muito para negar, somos todos diferentes. E mesmo que sejamos levados a comer as mesmas comidas, pensar as mesmas idéias, vestir as mesmas roupas, ouvir os mesmos sons, ainda somos todos diferentes. 


Descobri qual era o peso que me afligia. Meu peso é a semelhança entre nós. Somos cercados por ilusões, e perseguidos por uma constante sensação de falta. Sempre sentimos falta de alguma coisa, mesmo não sabendo exatamente o quê ou o porquê. 

Um dia desses um vizinho veio me perguntar “Tudo bem?”. Sorri dissimuladamente e menti (ou será que apenas omiti?): “Tudo”. Todos mentem. Afinal, somos reféns das aparências. Mas a pior mentira é a ilusão. Se iludir é mentir para si mesmo.


Quando crianças, já vivemos num mundo de sonho e ilusão. Acreditamos na existência das mais absurdas entidades mágicas e folclóricas, e que o mundo não é tão hostil como os adultos insistem em dizer. Com o crescimento vêm outras ilusões, cada vez maiores. Nos tornamos sonâmbulos, vagando pelo mundo em um sonho perene. Sempre achei estranha a palavra da língua inglesa para ‘pesadelo’: nightmare. Night (noite)... Eles se esquecem dos pesadelos diurnos. O pior pesadelo de uma pessoa é a desilusão. E essa não tem hora para chegar.

Perdido em devaneios, me pego sentindo como se estivesse preso em um enorme e invisível elevador. E como todo elevador que se preze, ele carrega as conversas sem objetivo, o desconforto, um princípio de claustrofobia, a sensação de tempo desperdiçado. E o pior é que não sei para onde esse elevador está me levando.  Isso me causa um medo terrível. Ouvi falar que as pessoas têm medo do que desconhecem. Pode ser isso.  E o elevador parece ser panorâmico. Enquanto me sufoco com a atmosfera controlada de dentro, vejo do lado de fora imagens aleatórias de outros ares, outros tempos. 


Tempos que não voltam mais. E com essas imagens vem aquela nostalgia, me lembrando do que me falta. Falta-me a visão do teu sorriso sincero. Falta-me o cheiro envolvente da maresia. Falta-me a doçura dos teus lábios. Falta-me o barulho do vento desbravando meus ouvidos. Falta-me o aconchego do teu cálido corpo. Falta-me sentido para tudo.

E são nesses momentos de ausência que percebo que odeio os relógios. Metódicos, incansáveis, frios... malditos. Nunca me deixam ficar perto de ti o tempo suficiente. E ainda fazem os momentos em que você não está comigo terem a duração de meses, anos, séculos. E acompanhado dos relógios desvaneço.

Começo a duvidar da existência de minha Lua particular. Os ciclos e fases passam, e a maré parece não mudar. Continuo preso no elevador. Procuro um meio de dar fim a esse desalento. Sei exatamente o que quero, só não posso dizer quando vou consegui-lo. Quer dizer, não sei exatamente. Não saber exatamente o que quero é um modo de me preservar. Querer demais traz a decepção, o descontentamento. Por isso meus desejos mais profundos são como o Sol em um dia chuvoso: continuam tão fortes e imaculados como sempre, mas estão escondidos, encobertos, parecem estar longe de sua plenitude passada. Escondo-os, em um lugar onde nem eu mesmo possa encontrá-los. Enquanto isso os relógios correm. Tic Tac.




Soundtrack:
 
 
 

 

1) Desalento - Chico Buarque (Letra)
2) How To Disappear Completely - Radiohead (Letra)
3) Time - Pink Floyd (Letra)