sábado, setembro 29, 2012

"Voi non capito niente della Russia" (Crítica: Nostalghia)



‘Nostalghia’, de Andrei Tarkovsky, leva às telas um sentimento característico dos russos: o apego fatal à pátria que gera uma incapacidade de se adaptar a outros lugares e estilos de vida. O foco está no poeta russo Andrei Gorchakov (Oleg Yankovsky), que vai para a Itália a fim de fazer uma pesquisa sobre Pavel Sosnovsky, compositor russo que passou um período na Itália no século XVIII. Andrei é guiado pela bela Eugenia (Domiziana Giordano), que serve como tradutora. Atormentado por uma profunda sensação de nostalgia, Andrei tem a todo o momento sonhos e lembranças de sons e imagens vindos de sua terra: sua família, sua casa, canções folk russas, as montanhas cobertas de neblina. Seu destino parece mudar um pouco com ele conhece o enigmático Domenico (Erland Josephson, um dos colaboradores mais freqüentes de Ingmar Bergman, um dos diretores favoritos de Tarkovsky), que trancou sua própria família por sete anos numa tentativa de salvá-los dos males do mundo. A partir daí, fica cada vez mais difícil para Andrei lidar com a relação incerta com Eugenia, as exigências de Domenico e a disputa interna entre o mundo material e o de seus devaneios e memória.
Gorchakov aos poucos percebe que suas sina e identidade se confundem tragicamente com as de Sosnovsky e Domenico, levados à loucura e depressão pelo apego incontrolável aos que amam. Talvez seja um ato forçado, mas é possível adicionar a essa lista o próprio Andrei Tarkovsky, mesmo com ele escrevendo em seu ‘Esculpir O Tempo’ que “seria uma atitude simplista identificar o autor com seu herói lírico”. Simplista ou não, Tarkovsky também vagou pela Itália acompanhado de uma tradutora (e Tonino Guerra, que colaborou no roteiro), e carregou essa nostalgia até o fim da vida.
Ao invés de mostrar paisagens exóticas de uma Itália que parece feita para turistas, ‘Nostalghia’ mergulha no interior de Andrei, dando a seus sonhos uma beleza poética realçada pela excelente cinematografia e uso do preto e branco. Guiados pelo personagem principal, todos os fatores conspiram para dar ao filme uma carga emocional verdadeiramente melancólica e saudosa. O uso de música clássica (principalmente Beethoven) se resume a momentos pontuais, dando um tom especial às cenas. Como todos os filmes de Tarkovsky, este filme está carregado de tomadas longas em ritmo lento, diálogos metafísicos e várias sequências em completo silêncio, exigindo certa paciência. Mas os que aprenderem a contemplá-lo serão recompensados com uma experiência belíssima.

domingo, julho 08, 2012

Ensaio: Lavoura Arcaica e a Sobrevivência Estética de Luiz Fernando Carvalho


“Como conhecer as coisas, senão sendo-as?”
- Jorge de Lima





            Entre as análises recentes da relação entre cinema e televisão, tendo em vista não só o material audiovisual produzido como também o veiculado pela televisão, é comum se perceber a idéia de que a televisão está, aos poucos, acabando com o cinema, idéia que às vezes é expressa de maneira maniqueísta demais. Por isso, é curioso que Lavoura Arcaica, uma das maiores produções do cinema brasileiro nos últimos tempos tenha sido fruto de uma relação tão próxima entre seu diretor, Luiz Fernando Carvalho, e a televisão. Não que essa proximidade tenha sido positiva, ou boa para ambas as partes. Pelo contrário. Ao final da década de 90, após terminar a telenovela O Rei do Gado, Carvalho sentiu que precisava de uma mudança contundente na sua carreira. Por uma questão de sobrevivência, até. Sobrevivência da sua própria capacidade – e crença nela - de expressão artística. Para exprimir isso, é melhor parafrasear o próprio diretor:

“[...] Chegou um momento em que eu estava bastante insatisfeito com o resultado do meu trabalho na televisão. Fazia leituras para propor objetos que pudessem renovar minha relação com o veículo. Mas o que procurava, realmente, era um texto que me colocasse contra a parede, que me respondesse coisas, que provocasse minha insatisfação com relação aos rumos da minha profissão; ou seja, algo que me fizesse jogar fora a meia dúzia de regrinhas sobre como contar uma historinha, tateava por algo carregado de muita verdade. Não deu outra, dei de cara com o Raduan.” (1)

            A idéia de sobrevivência também vem da fala de Carvalho:

“[...] O que isso [fazer Lavoura Arcaica] talvez represente na minha trajetória como diretor... talvez uma estafa em relação à televisão. Chegou um momento em que eu não consegui sair de uma certa convenção que eu havia proposto. Eu propus uma coisa...
IB: ... Pra você mesmo...
... Sim, até então, de uma certa forma, consegui sobreviver esteticamente dentro daquilo. O que eu propunha dava o tal retorno pra TV, o ibope, mas eu parei por aí. Não consegui mais me renovar dentro disso. Me senti repetindo, me copiando.” (2)

            Em muitos outros momentos ao longo da entrevista que gerou o livro Sobre O Filme Lavoura Arcaica, Carvalho demonstra uma profunda decepção com a televisão e até com seu trabalho dentro dela. E essas críticas parecem muito mais fortes e contundentes do que qualquer outra antes feita à televisão (brasileira, principalmente) e seu papel na cultura contemporânea, já que vêm de um diretor que até então tinha se destacado pela direção de telenovelas globais. Assim, é admirável a sua busca por uma possibilidade de expressão estética mais autêntica do seu papel de diretor, estando numa posição tão confortável comercialmente. Essa noção de ato de sobrevivência em reação à televisão está presente na crítica do filme de Inácio Araujo. Ele diz que “[...] Como a maior parte dos filmes que se fazem hoje parecem ter como aspiração e inspiração a TV, talvez seja apenas natural que um dos raros filmes de cinema de 2001 seja de alguém vindo da TV, isto é, que não sente nenhum complexo em relação a ela nem precise tomá-la por modelo”, e conclui que “Por isso, a passagem ao cinema de Luiz Fernando Carvalho é animadora. É verdade que Carvalho passa por ser o “enfant terrible” da Globo. Ainda assim, enfiar-se numa aventura como Lavoura e sobreviver é um triunfo”. (3)
            Voltando ao começo, o fato é que Carvalho achou o que procurava em Lavoura Arcaica, livro escrito por Raduan Nassar e publicado em 1975. Na verdade, ele tinha um desejo muito forte em relação à Menina A Caminho, coletânea de contos de Nassar lançada em 1997, um ano antes da época de pré-produção do filme Lavoura Arcaica. Houve uma aproximação entre Luiz Fernando Carvalho e Raduan Nassar, e depois do estabelecimento de uma relação de respeito e admiração mútuos, a possibilidade de fazer um filme de Lavoura Arcaica foi passada a Luiz Fernando. Como ele mesmo disse:

“Então logo se fez uma cumplicidade entre nós, sabíamos que pertencíamos à mesma família espiritual, fundamental para poder lidar com as entrelinhas do Lavoura... Mas havia também para Raduan um segredo, que agora eu acho que ele já externou isso, declarando que uma das coisas que mais o fez entregar o Lavoura pra mim quanto o Copo [Um Copo de Cólera] para o Aluísio [Abranches] foi o fato de sermos estreantes em longa-metragem”. (4)

            Luiz Fernando Carvalho podia ser estreante em longa-metragem, mas já conhecia bem a televisão brasileira, e principalmente sua figura maior, a Globo. Por isso, sabia que o único modo de passar Lavoura Arcaica para a linguagem do cinema seria através de um longa-metragem. Lavoura não é material de minissérie para televisão, ou mesmo de microssérie. Claro, é fácil pensar nessa possibilidade agora, depois de Carvalho ter feito algumas microsséries – bastante autorais em comparação com o resto do que se vê na emissora ou na TV brasileira como um todo – baseadas em obras literárias, mas não seria o primeiro exemplo filmes sendo transformados em microsséries para favorecer uma duração maior na história. O mestre sueco Ingmar Bergman já tinha feito isso com Fanny & Alexander e Cenas de Um Casamento, que tiveram uma versão para o cinema e outra – mais longa – para a TV. A duração em si é um fator que favoreceria a criação de uma microssérie. Carvalho até brinca que a versão final, de quase três horas – definitivamente acima dos padrões do cinema -, é sua versão comercial. Essa duração é mais uma afirmação do caráter autoral de Luiz Fernando assim: longo, denso, sem concessões, afastando-o ainda mais do cinema comercial. De qualquer forma, o formato de microssérie não ajudaria o filme, ainda que desse a ele mais cenas. A estrutura narrativa de Lavoura Arcaica e o ritmo que ela impõe não favorecem uma quebra em quatro ou cinco episódios. Tanto o livro quanto o filme fornecem e exigem grande imersão do espectador/leitor na obra, imersão que necessita do máximo de imediatismo possível. Ler o livro com o mínimo de intervalos possível é bastante recompensador para o bom leitor, assim como o transe e a experiência estética em que o bom espectador de Lavoura Arcaica entra com os rodopios da narrativa pode ser facilmente perdido dividindo-se a exibição do filme for dividida. O diretor até cogitou por um bom tempo a idéia de fazer dois filmes, separando a narrativa entre ‘A Partida’ e ‘O Retorno’ assim como no livro, mas abandonou a idéia porque o segundo filme seria bem menor que o primeiro. Não há exemplo mais claro para favorecer este argumento que o fato de o livro ter 194 páginas e a segunda parte (‘O Retorno’) só começar na 143ª. (5) Na primeira exibição do filme, realizada no Canadá, o crítico Fernando Solanas, enaltecendo tanto filme quanto livro que o gerou, comentou que para se fazer um filme de poesia mantendo o equilíbrio, “sem deixar o texto engolir o filme”, era preciso um poeta visual. (6) De fato, Luiz Fernando Carvalho fez poesia cinematográfica ao fazer Lavoura Arcaica, levando até a comparações com o mestre neste quesito, o diretor russo Andrei Tarkovsky. Mas para que essa poesia cinematográfica seja mostrada é preciso um meio que saiba a comportar e dê a ela o devido espaço e respeito, e como este não é o caso da televisão, este meio foi prontamente descartado. Seria um longa-metragem, então.
            A certeza de que seria Lavoura Arcaica o texto que deixaria Luiz Fernando Carvalho mais perto de sua sobrevivência estética veio, mas com ela também vieram muitas dúvidas. Como fazer diálogos a partir de um texto com uma linguagem tão lírica e próxima da poesia – portanto longe da linguagem usada no dia-a-dia tanto atual quanto da época retratada - sem que isso pareça cafona e artificial? Como transmitir através de recursos próprios do cinema a idéia de tempo da memória? Como assumir um ponto de vista particular de um personagem através da câmera? Como deixar claro o toque da tradição mediterrânea (libanesa, para ser mais claro) no filme sem parecer didático ou forçado? De certo modo algumas destas indagações estão presentes na crítica do filme de José Geraldo Couto, que afirma que “O prodígio do filme consiste na superação de uma série de dilemas, alguns falsos, outros reais. O principal deles é: como levar às telas, sem cair no reducionismo ou na literatice, uma obra literária densa, que em sua dicção elevada restaura o peso e o sentido de cada palavra, para além do seu uso cotidiano e banal?” (7) Uma resposta parcial para tudo isso pode estar na frase de Jorge de Lima que abre este ensaio. Segundo Luiz Fernando, “Todo o princípio de treinamento com os atores era de certa forma uma homenagem” a esta “[...] perguntinha”. (8) É óbvio que isso é apenas uma suposição, mas é possível que Luiz Fernando tenha conhecido o poeta (e também pintor, entre outras ocupações) (cristão) surrealista alagoano através de Raduan Nassar, já que este abre Lavoura Arcaica com uma citação de Jorge de Lima: “Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?” (9)
Antes de dar respostas mais precisas para as perguntas anteriormente citadas, é preciso que fique mais clara a relação entre Luiz Fernando Carvalho e livro. Considerando-se os absurdos que ocorrem com adaptações de livros para o cinema, não seria surpreendente se, com outro diretor no comando, o filme seguisse uma ordem cronológica tradicional. Carvalho afirma que vê a narrativa do livro como um diário de André, mas a oposição ao uso comum dos diários - geralmente associados a meninas pré-adolescentes e seus sonhos juvenis, começando por ‘Querido diário...’ – neste caso é bastante forte. Outro diretor poderia muito bem tornar a transição entre passado-presente-futuro mais clara, conservando a narração em off de André vinda de um tempo futuro, e organizar as cenas da forma cronológica tradicional, com as recordações da infância em primeiro lugar. Mas isso está longe de acontecer nesse caso. Luiz Fernando Carvalho demonstrou – e sempre demonstrará - um respeito extraordinário à obra de Raduan Nassar, ao contrário de outros diretores que trabalham com obras literárias como ponto de partida para seus filmes. Stanley Kubrick, por exemplo, fez sua carreira fazendo filmes baseados em livros – ou seja, não se pode falar em falta de respeito com a literatura por parte dele -, alterando significativamente em seus roteiros vários aspectos das obras, chegando até a gerar discussões e inimizades com seus autores. Carvalho, pelo contrário, não utilizou um roteiro propriamente dito. A base de todos, desde Marco Antônio Guimarães – que fez a trilha sonora – até Walter Carvalho – diretor de fotografia – foi o livro, ou sugestões e conversas tidas com o diretor a partir do texto. Cada um tinha seu livro, e o texto final de cada personagem foi adaptado por cada ator, com só uma “ajeitada” de Luiz Fernando. Este foi o mais perto de fazer um roteiro que o diretor chegou (o que de certa forma valida o fato dele ser colocado como responsável por ‘Direção, Roteiro e Montagem’ nos créditos). A valorização da linguagem de Nassar foi a máxima possível. Até por isso o diretor rejeita completamente a idéia de adaptação para se referir ao filme, porque, segundo ele mesmo, “sempre agi como se estivesse em diálogo com aquilo”. (10)
            Segundo Marco Antônio Guimarães, Luiz Fernando Carvalho se reuniu com todo o elenco e equipe de produção – incluindo ele, Marco Antônio – na mesa da família e por nove horas fez uma leitura do livro enquanto comentava com cada um o que queria para cada cena e colocava algumas músicas de fundo. Essa foi a única base que teve Guimarães para trabalhar. Quanto aos atores, as atuações não eram uma questão de decorar o texto ou não, ou de simplesmente “chegar lá, colocar a roupa e fazer” (10), como disse Selton Mello. Primeiramente, foi decidido que para que o trabalho dos atores funcionasse era preciso certa teatralidade, tanto na sua preparação quanto na atuação em si, por causa da linguagem rebuscada e poética do livro– totalmente fora do naturalismo – e de suas semelhanças com uma ópera ou um grande oratório, como colocou Solanas. Para isso, Luiz Fernando Carvalho resolveu guiar os atores pelas teorias teatrais do francês Antonin Artaud, vindo a explicar essa escolha posteriormente em entrevista:

“Achei que o Artaud era de todos o que mais poderia produzir um estímulo que se comunicasse com o redemoinho do Raduan, com o duplo do Raduan, então eu comecei a fazer as improvisações em cima das teorias do Artaud, das teorias do duplo, as teorias da linguagem invertida, de uma série de conceitos de linguagem, principalmente em cima do André, personagem do Selton. Exercícios assim buscando a não-racionalidade extrema do processo de estudo do texto. Trabalhar mais com as sensações...” (11)

            A preparação sob o método de Artaud foi usada principalmente com Selton Mello, para trabalhar o que Carvalho chama de ‘transe da linguagem’ do livro. Nesse transe, o personagem André viveu o que conta, ao mesmo tempo em que relata o que viveu e observa essa vivência, o que se aproxima dos conceitos de linguagem invertida de Artaud, na qual o ator é sujeito de sua atuação e ao mesmo tempo objeto e observador dela. O curioso é que Artaud é mencionado por Fernando Solanas quando ele fala sobre o filme após sua primeira exibição, dizendo: “Se Antonin Artaud nos visitasse essa noite ele diria: ‘Parabéns, até que enfim temos um filme que deixa o diálogo ser diálogo, e faz um trabalho [com as outras falas] através imagens e metáforas.” (12) Imbuídos pela teoria de Artaud e acreditando fielmente na frase de Jorge de Lima – é notável o quanto os atores parecem falá-la com outras palavras sempre que perguntados sobre o processo de preparação do filme -, os atores e a equipe de produção passaram quatro meses (contando com o período das filmagens) isolados numa antiga fazenda do interior de Minas Gerais – ao lado da fazenda de café reformada para as gravações -, se preparando para se tornar aquela família. Alguns começaram a preparação bem antes, como Simone Spoladore, que começou as aulas de dança com quase um ano de antecedência. Até Raul Cortez, que até os 70 anos sempre tinha recusado viver em comunidade, passou quatro meses assim e mal percebeu. Entre as atividades estavam acordar cedo para tirar leite de vaca, arar a terra, fazer o pão, ter aulas de dança libanesa e, obviamente, longuíssimas improvisações – sempre observadas por Luiz Fernando e Walter Carvalho – permeando tudo isso. Segundo Carvalho, “nas últimas improvisações já surgiam textos, movimentações precisas, que eu ficava anotando no canto da sala. Praticamente não há uma marcação no filme que não tenha saído das sessões de improvisação, o que acaba transformando os atores em reais co-autores do filme”. (13) Por causa dessa vivência em comunidade, todos tiveram que abrir mão de outros trabalhos, sendo Luiz Fernando o primeiro a fazê-lo. Logo no começo, ele chegou para a equipe e disse: “Olhem, cortei o meu vínculo com a televisão. Quem quiser vir vai ter que fazer o mesmo, porque senão não vai dar pra fazer, eu não vou parar um ensaio desses porque fulaninho foi ao Rio de Janeiro fazer um comercial de sabonete”. (13) Com o tempo, as irmãs já dormiam todas no mesmo quarto, os atores já tratavam Raul Cortez como Pai e Juliana Carneiro como Mãe, chegando ao ponto em que Selton Mello passou uma semana separado do resto – com uma pessoa cuidando de sua alimentação para que ele ficasse mais magro -, dormindo no quarto de pensão que serviu de cenário para a cena do diálogo com Pedro. E há unanimidade em declarar que todo esse tempo e essa preparação foram essenciais para o filme e um grande aprendizado para todos os envolvidos.
            Mas é óbvio que o livro de Raduan não foi a única referência artística para os envolvidos na produção do filme, como já ficou evidenciado aqui pela influência de Artaud no trabalho dos atores. Na passagem de livro pra filme era preciso entender e transmitir a “atmosfera bem brasileira, mas dominada por um sopro da tradição mediterrânea” (14) de que fala Alceu Amoroso Lima ao se referir ao livro. Para isso, Luiz Fernando Carvalho, Raduan Nassar e Raquel Couto (produtora, assistente de direção e pesquisadora de elenco do filme) viajaram para o Líbano e depois Sevilha, na Espanha, vindo a realizar o documentário Que Teus Olhos Sejam Atendidos. (15) O documentário e outras informações colhidas nas viagens foram passados à equipe, informações também colhidas do próprio Raduan Nassar – que tem origem libanesa -, como a presença da coalhada na cozinha – segundo Nassar “não há uma cozinha libanesa onde você não encontre uma coalhada pingando”. (16) Também houve extensa pesquisa na constituição do figurino de Beth Filipecki, por exemplo, em que se procurou utilizar roupas e tecidos que eram usados por imigrantes libaneses na década de 30 e 40, ou na direção de arte de Yurika Yamasaki, dando atenção aos mínimos detalhes, desde as panelas da cozinha até o muro de pedra que não deveria ter as pedras lascadas ou quebradas para se assemelhar aos muros da época. Marco Antônio Guimarães, além de ter a leitura do livro como referência – Carvalho também pediu que fosse utilizado um quarteto de violoncelos, dando como referência a trilha sonora de Noites do Sertão -, procurou dar um toque árabe/mediterrâneo à música do filme, e para isso utilizou compassos, ritmos e instrumentos comuns na música árabe. Walter Carvalho, por sua vez, teve na pintura sua maior fonte de inspiração na direção de fotografia. Se Lavoura Arcaica tem traços característicos do barroco, coube a Walter trabalhar a luz para que se ela se aproximasse do barroco, exaltando os contrastes através do uso do chiaroscuro e da própria absorção de luz – o filme se alterna entre momentos de quase completa escuridão e de outros em que se deixa a luz “estourar” o fotograma e inundar a tela. Esse contraste foi bem expressado por Carlos Alberto Mattos em sua análise do filme:

“Em Lavoura Arcaica, não é André – o filho desgarrado que retorna à casa paterna e precipita uma tragédia por conta de sua paixão incestuosa pela irmã – o único elemento a viver um transe. Toda a família o acompanha numa passagem de luz (harmonia, conhecimento) à escuridão (ruptura, inconsciência). Mais que isso, a própria narrativa entra em transe, anda em círculos, salta como louca. A imagem entorta-se, espicha-se, explode em excessos de claridade e negrume.” (17)

A atenção aos detalhes foi tanta que, segundo Luiz Fernando, ele passou praticamente seis meses discutindo com Walter se o filme teria janela 166 ou 235, com Luiz Fernando querendo a primeira e Walter a segunda. Finalmente foi escolhida a janela 166 por ser mais quadrada, fechada, ligada a um cinema de terceiro mundo, sendo assim identificada com André, enquanto a janela 235 é mais panorâmica, aberta, e identificada com a figura do Pai. Segundo Walter, Luiz Fernando conseguiu convencê-lo dizendo:

“Waltinho, a gente tem que filmar um filme cuja linguagem é arcaica, um filme que se enterra, que o chão, a Mãe, o Pai, os ancestrais, as paredes, a umidade das paredes, a marca das paredes, a tábua da mesa têm um tempo, têm um desgaste físico, visual, tem um tempo em cima das coisas... a fotografia tem que vir daí.” (18)

            Luiz Fernando explicou melhor as referências visuais do filme em entrevista, falando:

“Com relação aos pintores, você tem toda a pintura tenebrista espanhola, que representa um período próximo à dominação do Império Árabe na Península Ibérica, com uma grande predominância dos fundos negros e a presença dos dourados, que também dialogam com Rembrandt. As figuras alongadas do El Greco, entram por Caravaggio, Tinziano, Van Gogh, Degas, Munch, Millet, Cézanne... os Cristos do Velásquez, da iconografia russa também, já que a religião daquela família seria cristã ortodoxa.” (19)

            Colocando como perspectiva a relação entre cinema e literatura, Lavoura Arcaica (filme) se curva em reverência ao livro que o originou, ao mesmo tempo em que realça e afirma componentes e características da própria linguagem cinematográfica. Apesar dessa reverência, não se pode dizer que o filme trouxe para as telas o livro – ou partes dele – vírgula por vírgula, de certa forma. Isso porque o estilo de pontuação usado por Raduan em Lavoura Arcaica é distinto de qualquer outro, e a transposição desse estilo para as telas é interessantíssima. Na grande maioria do texto, não são usados pontos finais ao fim dos períodos, a não ser para marcar o fim de um capítulo. Em vez disso, Raduan usa e abusa do ponto-e-vírgula, apesar dele ter a mesma função dos pontos finais no livro. Os diálogos não são separados convencionalmente, sendo usadas apenas aspas para marcar as falas. Exceção à regra é o diálogo de André com o Pai e com Lula, no final do livro, em que é usado o travessão. Os capítulos variam de tamanho, havendo uns com até meia página e outros com mais de dez. Há também trechos enormes entre parênteses, geralmente marcando um tom mais reflexivo e calmo. Diferentes recursos foram utilizados para corresponder a tudo isso. Para os diálogos com o Pai e Lula, Luiz Fernando filma o diálogo de maneira mais tradicional, com planos e contra-planos bem definidos. Entre os trechos em parênteses, muitos são mostrados através de narração em off feita pelo próprio diretor (é interessante como isso de certo modo o aproxima ainda mais de uma autoria do filme, como também do próprio André), ainda que nem todas as narrações em off de pensamentos de André sejam feitas por ele. Inicialmente as narrações de Carvalho foram gravadas por ele apenas como guia, mas assim que Raduan Nassar viu uma das primeiras versões do filme com a voz do diretor narrando o filme, pediu a Luiz Fernando que a mantivesse assim, insistindo: “Não, tem que ser você!” (20) Algumas vezes quem as faz é o próprio Selton Mello, como na cena em que ele dá por falta da sua caixa de quinquilharias. Ismail Xavier aponta diferenças entre a fala de André com Luiz Fernando e a fala de Selton Mello. Isso

“[...] Reforça a oposição entre a voz como peça de drama e a voz como recapitulação, oferecendo dois timbres distintos ao mesmo protagonista. Um é o timbre do conflito, e o outro, da reconciliação. [...] Esta outra voz, a do narrador, exibe uma tonalidade híbrida, às vezes nostálgica, numa dicção própria à elegia que, na evocação, fala em nome de todos (da família). [...] A voz desse narrador não se encarna, ela permanece fora do circuito dos corpos visíveis, aproximando-se da música em seu efeito de envelope sonoro.” (21)

Para passar o ritmo do fluxo da consciência de André, Carvalho dá realidade ao tempo da memória de André através da montagem, alternando entre cenas de André já adulto, tomadas da natureza, cenas da infância e da vivência do André menino na casa, entre outros “tipos”. Configura-se assim uma montagem cinematográfica em fluxo de consciência – que lembra às vezes a de O Espelho, de Tarkovsky -, que torna realidade o tempo da memória, que dá cor e som ao descontrole emocional e verbal de André e varia entre cenas que mostram a dualidade do personagem, sempre anjo e demônio ao mesmo tempo, variando entre momentos profanos e sagrados assim como no livro. Através disso o diretor oferece ao espectador/leitor a chance de fazer uma espécie de montagem própria, preenchendo os vazios com sua imaginação. Isso fica claro quando ele descreve a estrutura de Lavoura “como sendo uma daquelas pinturas islâmicas em cerâmica, normalmente pinceladas sobre superfícies circulares, um prato, um vaso, onde a cada instante, quase desapercebidamente, surgisse um animal, uma flor, as coisas se revelando e você poderia escolher um ramo novo para seguir a cada instante”. (22) Já Ismail Xavier, em sua análise do filme, escreve que “o texto de Raduan imprime uma cadência hipnótica à narrativa. É potente o fluxo de associações em que a sensualidade e a opinião, o relato e a imprecação se expõem como um ritual que persiste em sua unidade, até mesmo quando é intenso o drama, o confronto intersubjetivo envolvendo André, seu pai, seu irmão e sua irmã”. (23)
A câmera também ajuda a aproximar o espectador da proposta do livro, no qual André mostra sua estória e participa dela ao mesmo tempo. Assim, a câmera assume o ponto de vista de André em várias cenas, mas não só o dele, assumindo também a visão de Ana, Pedro, entre outros personagens. Luiz Fernando define assim “o olho” do filme:

“Você provoca o acontecimento, você faz aqui a alquimia teatral toda, a alquimia da vida, mistura os atores, mistura a luz, mistura tudo, e depois você bota a lente. E a lente é um olho, e este olho é o olho do narrador, do Hamlet, que está olhando a tragédia do Édipo como sendo a sua própria tragédia. Essa relação entre passionalidade e reflexão da lente é que existe pra mim em termos de construção cinematográfica. Como se a lente fosse realmente o cinema refletindo sobre aqueles acontecimentos. Daí ser o cinema uma aventura de linguagem, tecendo e constituindo o próprio filme como personagem.” (29)

Até pela própria teatralidade que marca presença no filme, a câmera de Lavoura passa a ser não só um olho de André ou do cinema refletindo sobre aqueles acontecimentos literários, mas também um olho do cinema sobre o teatro. A configuração até simples de alguns cenários como o quarto de pensão ou a mesa da família e o fato de haverem poucas sequências nas quais a câmera se desloca muito em termos de distância tornam vários cenários do filme semelhantes a (e dignos de) um palco teatral. Assim, o cinema revela mais uma vez suas potencialidades, aproveitando todo o ambiente do teatro e explorando-o com recursos como closes e variações de plano entre os atores num diálogo.
Há movimentos maravilhosos quando a câmera assume o ponto de vista de André, como na cena do retorno à casa, quando André se vira para acompanhar um menino que acena do lado de fora do trem, e a câmera passa segundos mostrando só o escuro até que aparece a última chance de ver o menino (que é na verdade o próprio André, dando adeus à sua infância), através de uma fresta de janela – aliás, essa cena ganha muito mais destaque no filme do que no livro, onde se resume a “[...] foi um longo percurso marcado por um duro recolhimento, os dois permanecemos trancados durante toda a viagem que realizamos juntos e na qual, feito menino, me deixei conduzir por ele o tempo inteiro”. (28) Ou na cena em que o menino André entra na igreja feito um balão, e para acompanhar este movimento a câmera sobe e parece flutuar no ar. A proximidade com a visão de André é tanta que muitas vezes a imagem parece desnorteada, torta, desfocada, principalmente nas cenas do quarto de pensão. Outro exemplo está na cena da segunda festa, na qual há o mínimo de planos com André possível – só aparecem seus pés cavando a terra úmida – para reforçar a idéia de que o que ocorreu nessa festa não pode ser alterado, já está no passado – e a dor de André vem justamente da ciência disso. Há também certa nostalgia e carinho no próprio movimento de câmera ao mostrar os utensílios da casa e cenários da infância de André, nos travellings lentos e nos planos-detalhe (como no plano do “pente de cabeça em sua majestosa simplicidade no apanhado de seu coque”). (24)
Mas obviamente não se pode falar em passagem da música do livro para o filme. Uma das “vantagens” do cinema em relação à literatura, a música funciona em Lavoura Arcaica como uma espécie de camada sonora e emocional, ao mesmo tempo em que reforça o tal sopro mediterrâneo. De fato, a música não está no livro. Outra coisa que pode-se dizer que não está no livro é a luz, mas seu uso dramático foi ao menos sugerido no livro, como na cena do quarto de pensão – exatamente a mesma cena que Carvalho destaca quando fala desse uso da luz, se referindo à escuridão do quarto como um mergulho na escuridão e na tristeza de André -, quando Pedro conta a André o triste estado em que se encontra Ana depois de sua partida. André narra (as aspas após ‘tanto’ são do próprio livro, para indicar o fim da fala de Pedro): “[...] ninguém lá em casa nos preocupa tanto” ele disse e eu vi que meu quarto de repente ficou escuro, e eu só conhecia aquela escuridão, era uma escuridão a que eu de medo fechava sempre os olhos”. (24)
            Mesmo com tanta fidelidade, há cenas que não estão no livro, como era de se esperar (há aqui o risco de eu não me lembrar de ter lido determinada cena no livro), mas essas escolhas acabam sendo compreensíveis e aumento a qualidade do filme. Parece haver uma preocupação maior em mostrar o sofrimento da família, sofrimento esse que aparece não só através de cenas, mas também da visualidade e mera presença na tela dos personagens. Não há no livro passagens em que a Mãe acalenta e consola Ana depois de André ter partido, e ele não olha para trás quando sai de casa, encontrando o olhar da mãe. Também não há referência a uma cena em que André se masturba no quarto enquanto pensa na irmã a se olhar no espelho, apesar de que nas outras cenas de masturbação esse ato não fica tão claro através das palavras quanto no filme através das imagens. No diálogo entre André e o Pai, há antes dele um breve e emocionante encontro de André com sua Mãe, no qual André finalmente vê o estrago que tinha feito naquele rosto (de certo modo a falta desse plano é recompensada pela cena da partida de André, em que vemos a Mãe chorar), e fica mais evidente que o recuo de André no diálogo foi em parte por amor à Mãe, que o abraça e protege antes ainda do diálogo terminar. A maior diferença entre filme e livro nesse quesito está provavelmente na cena do sermão do Pai sobre a paciência (‘Era uma vez um faminto’). Neste capítulo do livro - há um capítulo só para este sermão -, André dá voz ao pai, e no final apresenta seu descontentamento com o sermão num longo trecho entre parênteses. No filme, o diretor deixou mais claro que as máscaras sociais dos personagens nesse simulacro se referem ao próprio âmbito familiar, utilizando Selton Mello e Raul Cortez na cena e colocando-a em preto e branco. Também não há referência nenhuma a André se enterrando sob as folhas ao final. No geral, uma das maiores forças do filme está em manter as perguntas que ficam sem resposta no livro. Quanto tempo André passa longe de casa? Ele fala em adolescência e percebe-se as marcas do tempo na sua barba e cabelos, mas ele realmente chegou a passar anos fora de casa? Por que Ana não fala? O que ocorre com a família após o ataque do Pai à Ana? Essas e outras perguntas, como outras coisas, ficam à mercê da imaginação do espectador.

            Luiz Fernando Carvalho sobreviveu, enfim. Seu filme foi um sucesso de crítica – não tanto de público, apesar de ter fãs fiéis até hoje – e conquistou vários prêmios ao redor do mundo. Ele voltou enfim para a Globo, onde fez mais uma novela das 9, Esperança, que teve uma das piores audiências entre da década entre a categoria – o que de certo modo foi uma vitória para ele. Essa foi sua última novela, e Luiz Fernando passou a última década fazendo minisséries para a emissora: Os Maias, Capitu, Hoje É Dia de Maria e Afinal, O Que Querem As Mulheres?. Esses trabalhos podem não ter atingido o mesmo nível de qualidade de Lavoura Arcaica, mas demonstraram sua capacidade de auteur (mais digna de louvor ainda por isso se dar numa emissora voltada para o lucro) e sua atenção à linguagem visual, valorização das palavras da boa literatura e da teatralidade. Apesar desse ser o desejo de uma quantidade considerável de pessoas, ele não veio a realizar outro filme até agora. Ele declarou em entrevista:

“Olhem... Pelo pouco que eu consegui colocar aqui, as razões que me levaram a filmar o Lavoura... são razões... são cacos de vários lugares, estilhaços, que me ajudaram a formar o filme. Portanto, estou digerindo um pouco esse processo, e fica difícil ainda falar sobre o filme, assim como também fica difícil ainda estar aberto para um outro filme. Talvez seja mais fácil estar aberto para um outro tipo de produção que necessite menos da minha disponibilidade emocional.”

Foi veiculado que ele já conseguiu patrocínio (financiamento) para fazer uma “adaptação” de A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector – outro livro praticamente “infilmável”. Fica implícito no livro Sobre O Filme Lavoura Arcaica que ele estava refletindo sobre esse projeto (ou uma “adaptação” de outro livro de Clarice) (e chegou a comentar isso nos bastidores) desde então. Foram praticamente cinco anos desde a pré-produção até o acabamento de Lavoura Arcaica, então só nos resta seguir os sermões do Pai e ter paciência, não questionando o tempo. Tendo em mente este ensinamento, fecho assim este ensaio com as palavras do Pai (ou com o último capítulo do livro), assim como o livro e o filme.


“(Em memória de meu pai, transcrevo suas palavras: “e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço”.)” (26)




P.S.: já que tanto se fala (mal) das traduções de títulos de filmes no Brasil, é digna de nota a generosidade que os tradutores tiveram com Lavoura Arcaica, pelo menos os ingleses e franceses. Já que não puderam se utilizar da combinação das letras ‘a’ formando a bela sonoridade de LavourArcaica, eles inventaram (e acertaram). O título em inglês é To The Left Of The Father (À Esquerda do Pai), que exprime precisamente o problema-chave da família (não se esquecendo que o lado esquerdo é tradicionalmente o lado maldito, tanto que na Antiguidade havia casos de se imobilizar e até ferir a mão esquerda para “converter” canhotos, e a ‘esquerda’ em italiano é ‘sinistra’), além de dar ao título maior conotação religiosa (referência inversa a ‘Está sentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso...’). Em francês o título ficou A La Gauche Du Pére, que remete ao gauche (torto) de Drummond, e ao irmão torto.





Referências Bibliográficas

(1) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 34.
(2) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 30.
(3) ARAÚJO, Inácio; 2001; Longa é exceção exemplar de cinema do país; Folha de São Paulo.
(4) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 39.
(5) NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica; 3ª edição.
(6) Uma Conversa (entrevista com Fernando Solanas); 2001.
(7) COUTO, José Geraldo; 2001; Lavoura Arcaica radicaliza linguagem; Folha de São Paulo.
(8) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica, 2002; pág. 105.
(9) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; pág. 5.
(10) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 34.
(11) COUTO, Raquel; Nosso Diário: Memórias da Filmagem de Lavoura Arcaica; 2002.
(12) Uma Conversa (entrevista com Fernando Solanas); 2001.
(13) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 94.
(14) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; Comentário de Alceu Amoroso Lima sobre o livro.
(15) CARVALHO, Luiz Fernando e COUTO, Raquel; Que Teus Olhos Sejam Atendidos; 1998.
(16) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 78.
(17) MATTOS, Carlos Alberto; 2002; As Paredes da Casa (introdução de Sobre O Filme Lavoura Arcaica); pág. 10.
(18) COUTO, Raquel; Nosso Diário: Memórias da Filmagem de Lavoura Arcaica; 2002.
(19) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 101.
(20) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 55.
(21) Ismail Xavier Fala Sobre Lavoura Arcaica. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=WYxlwHRwmsY.
(22) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 68.
(23) XAVIER, Ismail; A Geometria Barroca do Destino; 2006.
(24) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; pág. 37.
(25) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 57.
(26) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; pág. 193.
(27) CARVALHO, Luiz Fernando; Lavoura Arcaica; Europa Filmes; 163 min; 2001.
(28) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; pág. 147.
(29) COUTO, Raquel; Nosso Diário: Memórias da Filmagem de Lavoura Arcaica; 2002.



*ensaio escrito para a cadeira Cinema e Literatura da UFPE*

Ran


            Deixei o terreno preparado pra ver Ran (Akira Kurosawa). Não vi nenhum outro filme no dia antes de vê-lo, ao invés disso descansei por umas horas. Tudo para poder passar as mais de duas horas e meia do filme sem bocejos ou olhos vermelhos. Esperei que todos fossem dormir, peguei um lanche na cozinha e comecei. Sem demora comecei a entrar no ritmo do filme, ainda que os diálogos em japonês causassem certa confusão, misturada à curiosidade com que se vê algo incomum – os gritos indignados dos homens japoneses, principalmente, isso jamais vi igual em qualquer outra língua. Tomei gosto pelas montanhas cobertas de grama verde, pelos olhares fugidios das mulheres, pelos longos trajes que parecem flutuar centímetros acima do chão, pela dureza das armaduras reluzentes, pelas mãos rápidas ao sacar da bainha as katanas e pelos movimentos precisos que essas executam no ar, pelos tambores que selam a união entre imagem e som, confluindo para dar ao filme um aspecto inconfundivelmente japonês. Também é inconfundivelmente japonês o senso de tradição que é passado através de todos os personagens, tradição presente nos cumprimentos, nos menores que se curvam perante os maiores, nos lugares tomados por cada um nas refeições, no respeito – ainda que ele disfarce a hipocrisia -, respeito esse que torna absurdo o fato de Kaede (essa com olhar desafiador, agudo, como uma raposa calculando um bote) sentar-se acima do patriarca da família Ichimonji na “mesa” de família.
Antes da metade meu pai chegou, e depois de fraca resistência sentou numa poltrona e se pôs a ver o filme comigo, justamente numa das cenas que mais o agradaria - se eu tivesse que adivinhar -, a da primeira batalha. Percebendo seu interesse vindo na forma de perguntas, tentei resumir rapidamente as relações entre os personagens e o que se passava na tela. Não foi difícil de entender ou apreciar a beleza incontestável que se mostra até na dança sangrenta dos samurais em batalha, e na dor visível passada por seus ferimentos. Meu pai assistiu o filme por mais de quinze minutos, mas ao perceber que ele não acabava na primeira batalha, lembrou-se da hora e do cansaço e perguntou qual era a duração. Não fazia idéia de quanto tempo tinha se passado desde o começo, mais parecia que mais de uma hora faltava para o fim. Ele foi dormir, e brincando me disse para contar como o filme acabava no dia seguinte.
Mas como? Como colocar em palavras o que se sucedeu sem perceber então que é quase impossível transcrever o filme para um simples relato? Como falar das imagens do vento, do céu, do fogo? Da câmera que não encobre nada durante o horror da batalha, mas que nos deixa também de mãos atadas, sem poder interferir nos desejos dos homens – como Buda? Como falar do movimento orquestrado de centenas de soldados em guerra, ou do simples balançar de suas flâmulas ao vento da montanha? Do olho da câmera que ao longe vê, desolado, aquele cujos olhos não vêem? Como falar da morte de Kaede, a única morte em que Kurosawa faz questão de mostrar o derramamento de sangue, que violentamente mancha... mancha não, lava a parede e sua palidez imaculada com um esguicho, uma tinta eterna de sangue ainda pulsante? (Kaede, criada desde pequena em meio ao sangue das batalhas, que viu sua família ser massacrada e sua vida atrelada ao filho daquele que matou seus pais; catalisadora de todo o caos que toma a família Ichimonji, responsável por tanto sangue a manchar o solo japonês, sangue, sangue vermelho... vermelho marcado/incrustado na parede, no chão, na roupa, na espada)



Impossível. Melhor nem tentar.
No dia seguinte ele realmente perguntou como o filme acabava, ainda que só depois de algumas horas – me dando a impressão de que ele se esqueceria. Fiquei calado. Ele não insistiu, ainda bem, e fomos almoçar. Talvez eu ainda lhe conte... vai que ele peça pra ver o filme.

sábado, maio 12, 2012

Ensaio: A. Tarkovsky, poeta


           Em aproximadamente três décadas de trabalho, Andrei Tarkovsky explorou as possibilidades do cinema e da sua linguagem – tanto a do próprio Tarkovsky quanto a do cinema em si -, deixando um legado marcante não só para essa arte quanto para a criação artística do século XX como um todo. Ao publicar seu ensaio-manifesto ‘Naissance d’une nouvelle avant-garde: la câmera-stylo’, em 1948, Alexandre Astruc previu que “o diretor/autor escreverá com a câmera como um escritor escreve com sua caneta”. Naquele momento era impossível para Astruc ter tido contato com Tarkovsky ou com vários outros auteurs que surgiram a partir daí – o que torna sua “previsão” ainda mais impressionante -, mas com certeza Tarkovsky conheceu a teoria de Astruc. O diretor russo acreditava fielmente no conceito (segundo ele, “[...] o cinema, como qualquer outra arte, é uma obra de autor”) e fez bem o papel de honrar tal ensaio. Pouquíssimos nomes - talvez nenhum outro – se aproximaram desse ideal ao “escrever com a câmera” com tanta maestria, misturando a linguagem cinematográfica com outra linguagem caríssima à arte e principalmente à literatura: a linguagem poética. Tarkovsky deixa isso claro quando escreve já no primeiro capítulo de Esculpir O Tempo: “[...] o que me agrada extraordinariamente no cinema são as articulações poéticas, a lógica da poesia. Parecem-me perfeitamente adequadas ao potencial do cinema enquanto a mais verdadeira e poética das formas de arte”.
            Quando me refiro a Andrei Tarkovsky como poeta, não faço uso do sentido tradicional do termo. Para deixar a idéia da poesia de Andrei clara, posso parafraseá-lo: “Quando falo em poesia, não penso nela como gênero. A poesia é uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento com a realidade. Assim, a poesia torna-se uma filosofia que conduz o homem ao longo de toda a sua vida”. O próprio diretor se reconhecia mais como poeta do que como cineasta. O pai de Andrei, Arseni Tarkovsky, sim, era um poeta “tradicional”, das letras - foi de fundamental importância para a educação estética de Andrei ter tido Arseni como pai. Andrei criou poesia cinematográfica. Pretendo, ao longo deste ensaio, deixar claro o porquê de eu ter esta idéia. Antes de qualquer outra coisa, acho importante frisar que Tarkovsky não gostava do que foi chamado de “cinema poético”. Nele, segundo o russo, “tudo é deliberadamente incompreensível, e o diretor precisa elaborar explicações para o que fez”. Também preocupava Tarkovsky o fato desse tipo de cinema tentar se afastar do efetivo e do concreto, pois isso levava a “símbolos e alegorias e outras coisas do gênero – isto é, a coisas que nada têm a ver com as imagens que lhe são inerentes”.


            Uma das maneiras mais evidentes de provar a ‘autoria’ dos filmes de Tarkovsky é o fato de que, de certo modo, ele praticamente criou um novo gênero ao fazer filmes que não tinham um gênero definido – pelo menos essa era sua intenção. De fato, alguém que tente classificar os filmes de Andrei por gênero terá uma tarefa difícil. Podem-se identificar elementos de drama, ficção científica, suspense e até documentário. Andrei acreditava que “A verdadeira imagem cinematográfica edifica-se sobre a destruição do gênero, sobre o conflito com ele. E, neste caso, os ideais que o artista aparentemente busca expressar não se prestam, sem dúvida alguma, às restrições dos parâmetros de um gênero”. Seguindo tal crença, ele se aproximou de alguns de seus mestres como Bergman, Buñuel, Kurosawa, Bresson e Fellini, que “não são iguais senão a si próprios” e, portanto, estão fora (ou acima) de questões de gênero. Um caso emblemático é Solaris. Em Tempo Di Viaggio, Tarkovsky admite que não gosta tanto do filme porque não conseguiu escapar das convenções de ficção científica – materializada nos foguetes e estações especiais que foi preciso construir -, e acha que elas ficaram tão evidentes que acabaram se tornando “um fator de alienação”. Andrei considera que conseguiu superar o gênero de ficção científica – ele parece contente ao falar isso - em Stalker, apesar da situação ou estória básica claramente pertencer ao gênero.
            Entre as marcas principais desse tal ‘gênero Tarkovsky’ está, sem dúvida, o ritmo. Ver um filme de Andrei Tarkovsky pode ser um exercício de paciência, até por questão de duração. Eles são longos, alguns chegando perto de ter duas horas e meia, três horas. Ainda assim, não são longos demais, e sua duração não chega a prejudicar sua qualidade – se O Espelho tivesse mais meia hora de duração, por exemplo, eu ficaria bastante feliz. Talvez por intenção do próprio Tarkovsky, talvez por simples falta de costume, pode-se ter a impressão de que nos primeiros dez ou quinze minutos pouco ou quase nada de realmente relevante – ou que pareça ser relevante - acontece. É provável que uma pessoa desavisada ou mais impaciente, esperando uma noção do que virá a seguir ou alguma coisa que já lhe chame a atenção, fique frustrada e até abandone o filme. Outros aprendem e aceitam que nos filmes de Tarkovsky, principalmente os que vieram depois de Andrei Rublev, as coisas se movem e acontecem num ritmo particular, e “se entregam”. A imersão é tamanha que muitas vezes se perde a noção do tempo “real”, como eu mesmo já pude notar. Quando vi pela segunda vez O Espelho, por exemplo, só duas semanas depois de tê-lo visto pela primeira vez, só fui perceber que o filme estava perto do final quando lhe faltavam cinco minutos. Ou quando vi Nostalgia e Stalker pelo computador, em arquivos separados em duas partes, e tomava um susto ao fim da primeira parte, percebendo que mais de uma hora havia se passado.
            A percepção desse ritmo se dá de formas diferentes. Ele está, em primeiro lugar, na duração das tomadas. Tarkovsky gostava de usar tomadas longas, que podiam chegar a até seis minutos. A câmera dos filmes de Tarkovsky insiste em acompanhar seus personagens e se mexe bastante, geralmente em movimentos lentos e elegantes (com o auxílio de trilhos), sem ângulos inusitados ou efeitos majestosos. Um bom exemplo é O Espelho, que tem cerca de duzentas tomadas, enquanto um filme de duração parecida costuma ter cerca de quinhentas. Segundo definição do próprio Andrei, “o tempo específico que flui através das tomadas cria o ritmo do filme, e o ritmo não é determinado pela extensão das peças montadas, mas, sim, pela pressão do tempo [definida como “a consistência do tempo que corre através do plano, sua intensidade ou densidade”] que passa através delas”. Todo esse cuidado como ritmo dá aos filmes do diretor uma atmosfera característica, na qual se percebe o tempo fluir com naturalidade e sem pressa, fator que chega a tornar as imagens cinematográficas mais próximas da realidade e de “dizer a verdade”.
            Outro fator característico dos longas de Tarkovsky, e que volta à idéia da câmera que insiste em acompanhar os personagens, é o modo como o diretor lida com os sonhos. Andrei odiava ver em filmes cenas de sonho que se utilizavam de truques, ilusionismo, efeitos, e, no geral, mise en scènes já tidas como clichês que faziam os sonhos parecerem falsos. O mais perto que ele chegou disso foi utilizar, em A Infância de Ivan, um fundo – preto e branco - de cores negativas numa das cenas de sonho. O russo acreditava que o cinema era a mais realista das artes, e estende essa idéia aos sonhos, dando a eles um tratamento preciso e respeitoso, sempre tendo em consideração a chamada lógica do sonho, na qual “combinações insólitas e inesperadas de elementos inteiramente reais e situações de conflito entre eles”. Tarkovsky usa sequências de sonhos em todos os seus filmes, e, graças a todo esse cuidado citado, as torna dotadas de beleza e singularidade incríveis.
            Mas tudo isso não quer dizer que Tarkovsky retrata o sonho e a realidade da mesma forma, esteticamente falando. Nas cenas de sonho, o tratamento da cor e do som é diferente, ainda que isso não se configure como um mero ‘truque’. Visualmente falando, o efeito mais comum é o uso de filtros de cores – usado a partir de Solaris, já que A Infância de Ivan e Andrei Rublev são filmes em preto e branco, afinal -, que variam de filme pra filme e até diferem dentro do mesmo filme. Em Nostalgia, por exemplo, os sonhos variam entre um filtro roxo pálido e outro sépia, enquanto as memórias estão tons de cinza. Em O Sacrifício são usados filtros cinza para as cenas de sonhos e filtros de cor roxa ou sépia em cenas que são claramente “reais”. Em O Espelho, há filtros com tons de roxo, cinza, sépia e até amarelo usados numa infinidade de cenas de memória e sonho. Em Stalker, várias tomadas de cenas “reais” têm uma coloração que realça os contrastes com uma mistura de marrom e cinza, e às vezes o filme chega a beirar o preto e branco. Solaris alterna entre filtros preto e branco, roxo e azul.
Mesmo assim, ao fazer isso Tarkovsky não tinha a intenção de tornar a distinção visual entre sonho e realidade mais clara, de maneira que realidade = cor normal e sonho = cor em filtro. Também não era sua intenção associar a atmosfera de uma cena e a emoção que ela pode provocar a emoções ligadas às cores, como tornar mais melancólica ou triste uma cena ao usar um filtro em um tom de azul, cor comumente ligada a tais sentimentos. Não, isso seria simples demais. Na verdade, Andrei tentava modificar o impacto que a cor exercia sobre o público e a reação emocional que causava nele em diferentes cenas, e justificou essa atitude em Esculpir O Tempo, dizendo: “Talvez a maneira de neutralizar o efeito produzido pelas cores seja alternar sequências coloridas e monocromáticas, de tal maneira que a impressão criada pelo espectro completo seja espaçada, diminuída”. De certo modo, além de dar a cada tomada o efeito desejado, Tarkovsky também quebra com certas convenções que o espectador pode ter. Ao mostrar tanto sonho quanto realidade através de filtros de cores, o diretor faz seu espectador se entregar a tal ação e ter uma experiência mais sensorial e menos racional com o filme. Também não se deve deixar de notar a importância dada ao escuro e ao preto nos filmes de Andrei, mais em uns do que outros, e sua capacidade de provocar emoções como qualquer outra cor. Nostalgia talvez seja o mais escuro dos filmes de Tarkovsky, servindo de espelho para os sentimentos do personagem principal. Em muitas cenas, ele chega a ser tão escuro que só se pode enxergar os contornos da cabeça ou dos cabelos dos personagens (por ‘personagens’ eu quero dizer ‘Domiziana Giordano’). Outro uso de beleza incontestável do escuro é O Sacrifício. Nele, Tarkovsky trabalhou com o diretor de fotografia Sven Nykvist, colaborador freqüente de Ingmar Bergman, e o resultado de seu trabalho com a luz é que, em alguns momentos, o filme chega a ter efeito semelhante a uma pintura barroca.
            Como foi colocado, o som também é usado para dar uma estética diferente aos sonhos nos filmes de Tarkovsky. Não só música propriamente dita, mas efeitos sonoros também marcam presença até mesmo quando não há diálogos. Podem-se ouvir desde sons da natureza como latidos de cachorros ou o pingar de gotas – que não aparecem na imagem – até música eletrônica – bem diferente dos ritmos dançantes gerados por computador ou o que quer que se dê por música eletrônica hoje em dia -, sempre com a intenção de intensificar a experiência do espectador. Um bom exemplo está num dos sonhos de Nostalgia, quando vemos um cachorro atravessar correndo um pequeno lago ou riacho numa distância que parece ser de no mínimo vinte metros, mas podemos ouvir o barulho das batidas na água como se aquilo ocorresse a poucos passos de distância. Outro exemplo são as cenas de vento em O Espelho. Nelas, a imagem do vento por si só já traz uma grande beleza, mas o som do vento batendo nas folhas e carregando a poeira dão a elas uma intensidade sem par. O método também pode ser contrário. Num dos sonhos de O Sacrifício, o protagonista sonha com a guerra e vê centenas de pessoas correndo por ruas destruídas. As imagens sugerem um completo caos, mas depois de alguns segundos nos quais ouvimos passos, passa-se a se ouvir ao longe uma flauta e um canto suave e estranho, além de um curto diálogo. O diretor, mais uma vez, explica: “Quando os sons do mundo visível refletido na tela são removidos, ou quando esse mundo é preenchido, em benefício da imagem, com sons exteriores que não existem literalmente, ou, ainda, se os sons reais são distorcidos de modo que não mais correspondam à imagem, o filme adquire ressonância”. Talvez a mais fiel representação dessa idéia seja Nostalgia, em que tanto a falta de som quanto a intensificação do som são usadas de forma primorosa. Em Nostalgia, mais do que em qualquer outro filme, Tarkovsky se utiliza –e muito – do silêncio, que pontua a tristeza e as reflexões do personagem principal. De certo modo, as próprias pausas entre as falas de diferentes personagens durante diálogos parecem ser mais longas e – talvez por isso mesmo – reais do que em quaisquer outros filmes.
            Quanto ao uso da música em si, Tarkovsky tem uma visão quase oposta à de diretores como Kubrick e Hitchcock, que davam grande importância à trilha sonora e a utilizavam em parte considerável de seus filmes. Arseni considerava a música importante e valiosa para seus filmes, mas a achava aceitável quando usada como refrão, ou para conduzir as emoções do espectador em determinada direção, apenas. Ele cogitou até fazer filmes sem música, e chegou perto disso em Nostalgia e Stalker. De fato, o som que mais se ouve nesses filmes é o que o russo chamou de “voz da natureza”.
            Fica claro, tanto pelos exemplos de imagens quanto pelos de sons, que a natureza tem presença constante nos filmes do diretor. Ela e sua vida estão nos cachorros, presentes em quase todos os filmes, e nas algas que balançam em movimento quase hipnotizante. Nos riachos e pequenos corpos d’água, no som constante das gotas caindo. No fogo, o fogo que queima casas e até personagens, o fogo das velas. No vento, tão forte e belo em O Espelho. Apesar da opinião de muitos, Tarkovsky não desejava colocar a natureza e seus elementos como símbolos de alguma outra coisa. Era sua intenção apenas representar a natureza “com amor”, precisão e fidelidade, por acreditar que isso tudo faz parte da “verdade das nossas vidas”. Com ou sem porquês, a atenção que Tarkovsky dá à natureza é um dos aspectos mais bonitos de sua estética.


            Muito da autoria e da caracterização de Tarkovsky como poeta está não só na estética e na sua marca audiovisual, mas nos próprios roteiros. Como bom auteur, Andrei gostava de pelo menos trabalhar nos roteiros dos filmes que dirigia, e chegou a escrever três roteiros originais para O Espelho, Nostalgia e O Sacrifício. Nesses três filmes, principalmente, se percebe claramente o quanto da sua experiência pessoal Arseni transferiu para o cinema, apesar de isso ter sido feito com cautela ou não ter sido totalmente premeditado. Sua relação difícil com a família e pessoas que amava, sua dor por ter sido afastado da Rússia, a ausência do filho, a falta de espiritualidade alarmante da civilização ocidental... está tudo ali. Ao escrever seus roteiros, Tarkovsky pensava por imagens, como faz o poeta segundo ele próprio, e assim criava imagens, no caso, cinematográficas. Seu modo de poeta está até como ele via sua profissão. Segundo Tarkovsky, “Ele [o diretor] passa a ser um artista no momento em que, em sua mente, ou mesmo no filme, seu sistema particular de imagens começa a adquirir forma – a sua estrutura pessoal de ideias sobre o mundo exterior – e o público é convidado a julgá-lo, a compartilhar com o diretor os seus sonhos mais secretos e preciosos”. Sempre achei que, com certas alterações, essa frase poderia muito bem ser dita por um poeta, que expressa seus sentimentos mais íntimos através do seu trabalho.
Tarkovsky se interessava primariamente no homem, e assim criava personagens que, ao se depararem com situações que pareciam fugir do seu controle, buscavam forças dentro do seu íntimo e assim se descobriam. E filosofavam também, e muito, mas só porque seu criador dava a eles valor demais para que existissem de qualquer outro jeito ou que não se expressassem como deviam. Também é possível notar como marca da autoria do diretor, cristão ortodoxo convicto, o constante uso de referências a ícones e estórias religiosas. Esses símbolos, como quase todos os outros nos filmes de Tarkovsky, não tentam passar mensagens ocultas ou coisa parecida. Eles apenas estão lá. Só em O Sacrifício, como admitiu o próprio Tarkovsky, eles são usados sutilmente para criticar a falta de espiritualidade do homem moderno, principalmente do ocidental.
            Quanto à estrutura narrativa de seus longas, é difícil classificar Tarkovsky ou fazer um paralelo entre seus filmes e a literatura, estruturalmente falando. O Espelho lembra muitas vezes um fluxo de consciência, como se o filme todo se passasse na cabeça do personagem principal e ele não conseguisse conter o fluxo de lembranças e sonhos. Ainda dentro desse filme, o discurso de alguns personagens se assemelha ao monólogo interior em alguns momentos. Em Stalker, por outro lado, há intencionalmente o mínimo de lapsos de tempo possíveis. Tarkovsky queria “[...] demonstrar como o cinema, com sua continuidade, é capaz de observar a vida sem interferir nela de forma grosseira ou evidente”, por acreditar que está nisso a verdadeira essência poética do cinema. Com isso, o filme se assemelha, principalmente, à prosa poética. Talvez todos os filmes do diretor se aproximem mais da prosa poética, de um modo geral, com uso recorrente de monólogos interiores e passagens bastante descritivas visualmente. O modo como o espaço é mostrado, aos poucos, também lembra mais a literatura do que o cinema convencional, no qual os espaços e cenários são mostrados de forma mais aberta. Um exemplo digno de ser lembrado é uma das cenas de O Espelho na qual o personagem principal e sua ex-mulher conversam dentro do apartamento. Por alguns minutos, ela dá voltas e voltas pelo cenário, e podemos ver de relance as janelas. Podemos ter facilmente a impressão de que eles estão, no mínimo, no segundo andar. Porém, quando a câmera se foca no lado de fora, onde Inayat aparece contemplando um fogo no pátio, se tem a certeza de que o apartamento fica, na verdade, no térreo.
A poesia também está presente nos filmes de Tarkovsky na sua forma escrita, claro. São declamados vários poemas do seu próprio pai, Arseni, e de Fyodor Tyuchev. Cartas também são lidas, de Puchkin para Chaadayev, e de Sosnovsky para Nikolayevich. Essas leituras se dão predominantemente em sob a estrutura de monólogos interiores, mas há também casos de diálogo comum de prosa, como quando Inayat lê a carta de Puchkin.


            Com certeza, muito mais poderia e pode ainda ser dito sobre o trabalho de Andrei Tarkovsky. A única coisa ruim sobre ter que escrever esse ensaio foi a falta de organização do meu próprio tempo, que só me deixou ver O Sacrifício, O Espelho e Solaris mais de uma vez. Os filmes desse diretor, como poucos outros, conseguem recompensar o espectador que se dispõe a vê-los de novo, propiciando a descoberta de detalhes que ele não tinha percebido, emoções que ele não tinha sentido, ou até mesmo interpretações e conclusões opostas às da primeira experiência. Como disse o próprio Tarkovsky, “[...] sempre há mais num filme do que aquilo que se vê – pelo menos, se for um verdadeiro filme. Sempre descobriremos nele mais reflexões e idéias do que as que ali foram conscientemente colocadas pelo autor. Assim como a vida, em constante movimento e mutação, permite que todos sintam e interpretem cada momento a seu próprio modo, o mesmo acontece com um filme autêntico; ao registrar fielmente na película o tempo que flui para além dos limites do fotograma, o verdadeiro filme vive no tempo, se o tempo também estiver vivo nele: este processo de interação é um fator fundamental do cinema”.


Observação: todas as frases entre aspas, com exceção da de Astruc no primeiro parágrafo, são de Andrei Tarkovsky, tiradas de Esculpir O Tempo.




(ensaio escrito para a cadeira 'Cinema e Literatura')

domingo, abril 08, 2012

Há Saudade

Tive saudade – ela mais minha do que nunca –,
(saudade como medida do que se gosta e ainda se pode – e se quer – ter)
num certo quarto escuro - ainda fresco na memória -, corpo preso a um solo infértil.
Invisível, me desfazendo em lágrimas por sobre o piso
Saudade de doer, gritar, até que se perceba que gritar é inútil
Saudade crônica, quieta, que vem de novo me aplacar
como que esperando o mínimo sinal de fraqueza.
Saudade pela força infinita da mudança.
Saudade e medo. Medo do futuro e seu peso surreal,
medo da pequenez de ser apenas um homem sem controle do próprio destino,
medo de voltar pr'aquele quarto,
encolhido num canto da parede, pés no chão frio,
olhos doídos, querendo se fechar e deixar que se ocupem da visão a memória, o sonho.
Saudade como ferida que vai se cicatrizando,
lenta o suficiente para que se percebam suas marcas.

Dessa saudade eu me cansei.



Ainda a sinto, em doses
Numa música que há muito não se escuta
Na estante, numa foto que já me cansou, desbotada
Na imagem que não está em foto (a foto que não existe)
Saudade nas cartas que se guarda, nas que não se recebe, nas cartas queimadas
No fundo da gaveta, numa já encardida, borrada pela lágrima
Numa certa rua colorida pelo Sol numa certa hora
No cheiro de perfume que ficou – na roupa, na memória.

Me cansei... me canso.

segunda-feira, março 19, 2012

Ela

Ela procura a poesia e sua beleza
Ainda que não saiba defini-la
Ou o que faria se pudesse tocá-la, tendo sua essência por entre os dedos
Uma busca às vezes vã, mas de recompensas infinitas.

Poesia nas coisas pequenas, nos detalhes
Nos fios fora de lugar do cabelo que insiste em se bagunçar,
Na fumaça de um cigarro pós-café se iluminando e desaparecendo no ar
Poesia repousando num piano, num trompete,
Esperando o momento de ser solta no ar, conjurada,
Seu som reverberando nos cantos da alma
Na redescoberta de um sentimento quase esquecido e há muito aguardado
Num sorriso que se conquista, ainda que não se mereça
Poesia duma tristeza que é conhecida, mas não negada
Numa felicidade que de tão palpável e absoluta não parece real
No beijo longamente aguardado
No observar dos contornos dum vestido
Na beleza da inegável imperfeição de um corpo nu
A beleza crua e verdadeira das linhas duras e tortas
Poesia na beleza escondida dos olhos, na beleza que é descoberta, beleza achada
Poesia no azul de uma segunda tempestuosa
No surrealismo dos sonhos, sua supremacia e intimidade
No se sentir livre - não no ser livre -, a poesia do fluxo
A poesia das coisas não-ditas, dos silêncios
A poesia que vale a pena ser escrita, descrita, vivida.

segunda-feira, março 05, 2012

Análise: Vertigem, som e cor

                 ‘Vertigo’ (infelizmente traduzido no Brasil pra ‘Um Corpo Que Cai’ em vez de simplesmente ‘Vertigem’), de 1958, é uma obra-prima de Alfred Hitchcock que não foi sucesso instantâneo de público e crítica como outros filmes do diretor, mas que a partir da década de 1960 foi ganhando o respeito que merece e hoje é tido como um dos melhores – senão o melhor – filmes de Hitchcock.


                O roteiro, que Hitchcock buscou aperfeiçoar por anos, é uma adaptação do romance D’entre Les Morts, de Boileau-Narcejac. A versão final foi escrita por Alec Coppel e Samuel Taylor. A trilha sonora foi escrita pelo lendário compositor alemão Bernard Herrmann, em sua quarta colaboração com Hitchcock. Hitchcock sabia combinar som e imagem para obter a emoção e o efeito desejado como poucos, e a trilha sonora de Herrmann é uma das melhores de sua carreira e essencial para o filme.
                Vi o filme pela primeira vez em abril ou maio de 2010, e ele desde já me marcou, ficando entre os meus favoritos. Tive vontade de escrever uma análise sobre ele depois de assistir o ótimo documentário Um Toque de Mestre: A Assinatura de Hitchcock (The Master’s Touch: Hitchcock’s Signature Style).


                Vertigo já começa com um tom estranho. A cena de abertura, que dura quase 3 minutos, planejada pelo lendário designer gráfico Saul Bass – que também criou pôster(s) para o filme -, dá de cara ao espectador uma sensação de que alguma coisa ruim está prestes a acontecer. A primeira coisa aparecer é o rosto de Kim Novak, num super close do rosto de Kim Novak em que a lente parece estar a centímetros da atriz. A câmera se move lentamente da boca, aos olhos, ao olho direito, revelando os nomes principais do filme (James Stewart, Kim Novak, Alfred Hitchcock). Quando nos aproximamos do olho direito, a tela, que já tinha uma coloração alterada (diminui-se o nível de cores), ganha um filtro vermelho. E de repente sai o nome VERTIGO do olho de Novak, e ele fica cada vez mais próximo, movimento esse que é acompanhado pela música. Novak também acompanha, abrindo o olho o máximo possível. De repente aparece um redemoinho dentro do olho, desenho/tema/motif que será constante no filme. O redemoinho fica cada vez mais próximo, até que toma conta da tela e é substituído por outros redemoinhos, com os créditos revelando nomes “secundários” do filme. Depois de uns segundos os redemoinhos voltam para o olho de Novak (de novo em close). Agora o texto que sai do olho e fica cada vez maior é ‘DIRECTED BY ALFRED HITCHCOCK’. E assim se encerram os créditos iniciais.


                Imediatamente a música muda, e o ritmo dela agora é bem mais acelerado. O filme começa com uma cena de perseguição noturna pelos telhados de São Francisco, em um close de uma escada. Logo é mostrada uma mão (do criminoso) subindo a escada, a imagem abre, e são mostrados o criminoso, um policial, e o detetive John Ferguson, ou Scottie, para os íntimos, interpretado por James Stewart, em seu quarto e último filme com Hitchcock, que depois passou a criticar/desaprovar a escolha dele como protagonista por ser 26 anos mais velho que Kim Novak e “já velho demais para atrair o público”. É difícil dizer se Stewart era velho demais para atrair o público, mas na cena da perseguição em particular ele parece velho, e não consegue passar de um telhado para o outro, e cairia se não tivesse se segurado no... parapeito? Enfim... ele fica preso, e seu parceiro deixa o bandido escapar e volta para tentar ajudá-lo. Desesperado, Scottie olha pra baixo, e é revelado sua acrofobia, que até então era latente. A partir deste momento a câmera assume o ponto de vista de um personagem, no caso, Scottie, marca registrada de Hitchcock. O diretor consegue isso intercalando closes de Scottie, desesperado, e planos da queda que o espera, como se a câmera fosse os olhos dele. Para acentuar o efeito de vertigem, foi criado pelo cameraman Irmin Roberts o que depois foi apelidado de “vertigo zoom” ou “contra zoom”, ou seja, puxar a câmera para trás através de um trilho enquanto se acentua o zoom da câmera. Hitchcock tinha planos de obter algo parecido desde as filmagens de Rebecca, de 1940, mas só foi conseguir o efeito em Vertigo. A combinação do vertigo zoom com os closes de um Scottie amedrontado e uma música de fundo tensa dá ao espectador uma sensação o mais próxima da sensação do protagonista possível. O policial também é mostrado através dos olhos de Scottie, de baixo para cima, estendendo a mão para tentar salvar o colega. Scottie, tomado pelo pânico, fica congelado, e o policial escorrega e cai para a morte. Scottie olha o policial caído (ou a câmera olha o colega caído) ainda em estado de choque, mas por algum milagre consegue se salvar.

              
  Depois do acidente, por uns minutos muda completamente de ambiente/clima. De uma cena escura nos telhados de São Francisco, Scottie agora aparece no apartamento bem-iluminado e florido de sua velha amiga e Midge (interpretada por Barbara Bel Geddes). Os dois, impecavelmente vestidos, conversam amigavelmente, e revelam que Scottie desistirá da carreira policial por causa da acrofobia. Também é comentado que Midge e Scottie foram noivos por três anos, e que foi Midge que terminou o noivado. Porém, com os dois ainda solteiros, e julgando pelas respostas e olhares – ressaltados por closes – de Midge, ela parece nutrir um amor platônico por Scottie. Quando Scottie diz “Oh, não seja tão maternal, Midge”, por exemplo, ela olha pra ele de um jeito diferente (em close), meio que ofendida e meio que surpresa por ele perceber isso, mas de fato Midge chega a ser uma figura maternal para Scottie. Midge também revela que, segundo um médico a quem ela consultou, somente outro choque emocional forte poderia curar Scottie da acrofobia, e talvez nem isso. De brincadeira, Scottie tenta curar a acrofobia se acostumando a alturas aos poucos, e sobe na escada de cozinha de Midge. Mas ele olha pela janela e percebe que está a uma altura considerável do solo, e tem vertigem novamente. A cena só tinha até agora a presença discreta de uma música de Mozart, que foi parada a pedido de Scottie, mas assim que Scottie tem mais um ataque de acrofobia ela aparece de novo, demonstrando musicalmente todo o pânico do protagonista. Midge o acode, voltando à idéia da figura maternal.



(HITCH APARECE ANDANDO COM UMA COISA ESTRANHA NA MÃO, AQUELE DISCRETO)

                Na cena seguinte, Scottie vai ao escritório de Gavin Elster, antigo colega de faculdade que agora administra um negócio bem lucrativo nas docas, graças à herança de sua mulher. Elster revela que ficou sabendo do acidente (e da acrofobia) de Scottie e de ele ter se demitido, e, sabendo que ele era um detetive, pede para ele seguir sua mulher como favor. Scottie recusa inicialmente mas Elster fala de uma estória estranha, sobre ela ser possuída por uma familiar morta (Hitchcock mostra Scottie em close quando Elster lhe fala de uma pessoa morta causando mal à sua mulher, para realçar a incredulidade de Scottie, depois recua a câmera e retorna para um plano com os dois personagens, então intercala closes dos dois quando Scottie recusa o pedido grosseiramente, e volta os dois para o mesmo plano quando Elster o convence). Scottie não acredita de cara, mas se interessa, e aceita encontrá-los num restaurante (Ernie’s) mais tarde.
                A próxima cena se passa no Ernie’s, onde Scottie se senta no balcão para observar Elster e sua mulher (Kim Novak) jantando, e é uma das mais belas do filme. Além disso, demonstra todo o respeito de Hitchcock pelo cinema mudo - a cena não tem diálogos -, onde ele começou. Martin Scorsese, quando entrevistado para os extras do DVD de Vertigo, ressaltou o “uso extraordinário das cores” e a trilha sonora de Bernard Herrmann, que – segundo ele – é feita de círculos, como o motif do redemoinho nos créditos iniciais (mais sobre isso depois). Este foi o sétimo filme de Hitchcock em cores (Technicolor), sendo o primeiro Rope, de 1948. Provavelmente este é o filme com o uso mais significativo delas. Essa cena é especial pelo uso de som, cor e câmera. Primeiro se vê Scottie observando o interior do restaurante – de luxo - procurando pelos dois, num ângulo como que de trás do balcão. A câmera recua, como que assumindo o ponto de vista de Scottie, mas de um jeito diferente, e revela em sua plenitude as paredes vermelhas do restaurante. A câmera se desloca lateralmente até o centro do restaurante, como que à procura do casal. Até que ela “acha” Elster, e se desloca até ele. Vemos sentado com ele uma mulher loira, com um maravilhoso vestido verde e preto que deixa parte de suas costas à mostra. Então ela passa a se aproximar lentamente. Até então o que se ouvia era o tilintar de talheres e o som de várias pessoas conversando ao mesmo tempo, como é normal num restaurante. A partir do momento em que a câmera começa a se mover na direção de Kim Novak, entra a música de Herrmann, numa das variações principais da música que ele compôs para Scottie e Madeleine. Ao contrário da música usada até então, essa é tranqüila, mas marcante, e dá um tom apaixonado à cena. Há um corte para um close de Scottie, ainda observando, e a partir daí a câmera assume os olhos dele, e a edição alterna entre closes do protagonista e a vista, ainda meio que de longe, da mulher de verde. Não sei bem o porquê de o verde ser tão ligado à personagem de Kim Novak, mas ele aparece em outras ocasiões no filme. Talvez por ser a cor oposta ao vermelho, o vermelho da parede do Ernie’s, onde Scottie a viu pela primeira vez, ou o vermelho como que ligado à paixão (o que faria certo sentido) não sei. Madeleine se aproxima lentamente, e à medida que ela chega perto de Scottie, a música também aumenta. Quando ela chega bem perto de Scottie (Elster para pra conversar com um garçom), ele a vê com o canto do olho, de costas, mas ainda assim claramente. Ela para, e a iluminação fica mais forte para realçá-la, enquanto a música chega ao seu ápice. Ela ameaça virar o rosto na direção de Scottie, que vira a cabeça para frente rapidamente, mas ela – supostamente – não o vê (pelo menos não nos olhos), e ao invés disso vê que Elster está indo embora e o acompanha. A iluminação volta ao normal, a música diminui, e a alternância de planos prossegue, mostrando Scottie observando os dois saírem do restaurante, passando por um espelho enorme. 


                Agora vemos Scottie, que aceitou o “emprego”, seguindo Madeleine num carro branco pelas ruas de São Francisco. Ela está num carro verde e usa uma roupa completamente cinza, que foi desenhada/planejada por Hitchcock e Edith Head para dar um visual estranho a ela. A música agora tem uma aura de suspense, apesar de quase não variar de ritmo ao longo da cena. Scottie segue Madeleine pelas ruas e ladeiras de São Francisco, primeiro até um beco onde Madeleine entra por um corredor escuro numa loja de flores. Scottie a observa pela fresta de uma porta, e ela é mostrada através de um espelho (quando não pelos olhos dele), de novo. Depois, ela vai até uma igreja, e de lá entra em um pequeno cemitério. A iluminação dessa cena parece pálida, principalmente nos tons de branco, o que dá um tom meio de assombração pra ela. Esse tipo de iluminação vai ser usado de novo no filme futuramente. Em todas essas cenas, Madeleine sempre acha um momento para observar o nada, como se estivesse querendo ter certeza de que Scottie a segue. A música, que até então se mantinha quieta, em estado de apreensão, aumenta subitamente quando Scottie vê a lápide que Madeleine observava: a de Carlotta Valdes, morta em 1857. Depois ele a segue até um museu, onde Madeleine observa o ‘Retrato de Carlotta’, no qual há uma mulher com buquê e cabelo iguais aos de Madeleine. Zooms e closes mostram a visão de Scottie. Do museu, eles vão até um pequeno hotel. A câmera continua alternando entre closes de Scottie e ângulos como que de dentro do carro. No hotel, a dona faz parecer que Madeleine não tinha ido lá, apesar de Scottie tê-la visto na janela, o que o faz indagar se ele não está imaginando coisas.

                Obcecado pela estória de Carlotta e Madeleine como nos tempos de detetive, Scottie vai atrás de Midge, que o apresenta a Pop Leibel, bibliotecário que lhes conta a estória de Carlotta. Não há música nessa cena, mas lentamente a iluminação da biblioteca vai ficando cada vez mais escura (com tons de azul), enquanto Pop fala da triste saga de Carlotta. Quando Scottie e Midge voltam pra casa, já é de noite. Parece que se passaram duas horas naquela biblioteca. Então Scottie conversa com Gavin Elster, agora já convencido da gravidade do caso. Elster dá ainda mais razões para Scottie acreditar que Carlotta está tomando posse de Madeleine para tentar matá-la, com mais detalhes que comprovam sua teoria.

                E de novo Scottie segue Madeleine, que, depois da visita ao museu, vai à baía de São Francisco, abaixo da ponte. Agora ela veste roxo bem escuro, quase preto (cor do luto), com um longo lenço roxo que lhe dá um contraste estranho. Depois de jogar flores na água, ela se joga – ao mesmo tempo a música aumenta consideravelmente, demonstrando todo o susto de Scottie, que se joga na água para salvá-la. Ele a tira da água e a leva pra casa. Dentro do apartamento de Scottie, a câmera passa lentamente pela cozinha, onde estão penduradas as roupas de Madeleine. Ela dorme na cama, mas assim que o telefone toca Madeleine desperta, e percebe que aquele homem a despiu, deixando ela com uma expressão assustada. Ele oferece a ela uma camisola vermelha. Assim que ela sai do quarto vestida com a camisola, a música lentamente aumenta e volta ao tema entre Scottie e Madeleine. Eles conversam, e assim que Scottie acidentalmente segura a mão dela e eles trocam olhares, o telefone toca. Scottie vai atender (Elster na linha), e enquanto isso Madeleine vai embora. Do lado de fora, Midge observava tudo, e fica triste ao ver Madeleine saindo do apartamento de Scottie. 


                No dia seguinte, Scottie mais uma vez segue Madeleine, e dessa vez ela vai, para sua surpresa, até o apartamento de Scottie. Dessa vez ela veste um casaco/sobretudo branco, com detalhes (longo lenço e luvas) pretos, contrastando com as cores do dia anterior (no qual ela “tentou se matar”). Eles vão a uma floresta, onde Madeleine dá sinais de “possessão”, e depois à praia, onde ela finge tentar se matar, e Scottie obviamente a salva. Eles se beijam, e ela o prende cada vez mais em sua obsessão. Uma variação do tema de amor de Herrmann toca mais alto que nunca, intensificado pelo som das ondas.

                À noite, Scottie volta ao apartamento de Midge, agora vestida de vermelho, e disposta a fazer uma última tentativa ao coração de Scottie. Ela faz uma réplica do Retrato de Carlotta com o seu rosto, mas Scottie não gosta da brincadeira e vai embora. Midge é deixada se lamentando amargamente. Também se faz outro jogo com as duplicatas, presente nas várias vezes em que os personagens são mostrados normalmente e através de um espelho, quando se mostra o quadro de Midge e ela própria ao lado.


                 Madeleine aparece mais uma vez no apartamento de Scottie, novamente vestida de cinza (meio termo entre preto e branco). Scottie a leva para a Missão San Juan Batista, que supostamente aparecia nos sonhos de Madeleine. Scottie tenta em vão “curá-la”, mas apesar de ter conseguido seu amor, ela ainda tem “algo a fazer”. A música varia entre um tema de suspense e um tema de amor, de acordo com o que acontece em cena. E então, assim que Madeleine corre para dentro da Igreja com a torre e Scottie percebe o que ela fará, o som que se ouviu nos momentos de acrofobia de Scottie volta (quando há um close da torre). Scottie tenta em vão subir a escada e alcançá-la, mas a cada vez que ele olha pra baixo fica mais tonto (e há um contra zoom). Scottie para no final, há um grito, e pela janela Scottie vê Madeleine caindo de cima da torre para o telhado da Igreja. Ele a vê estirada sobre os tijolos, morta, e foge. Hitchcock fecha a cena com a câmera num ângulo acima da torre, que mostra Scottie – pequenino – fugindo por um lado enquanto tentam tirar o corpo de Madeleine pelo outro lado.

                Pouco tempo depois, ocorre o julgamento de Scottie, na própria Missão. É concluído que Scottie não foi culpado diretamente pela morte de Madeleine, e ele não é preso. Elster vai para a Europa, levando a fortuna de sua falecida esposa consigo. Scottie visita o túmulo de Madeleine, e ao chegar em casa tem pesadelos horríveis com ela. A cena do pesadelo é bastante destacada, com presença marcante de música, uso forte de filtros artificiais (principalmente azul e vermelho) que fazem as cores se alterarem rapidamente, e é realçado o colar de Carlotta, que aparecerá com destaque depois. Scottie sonha que cai num abismo que é o túmulo de Carlotta, e de lá vai parar no telhado da Igreja onde Madeleine morreu. Ele acorda desesperado, e na cena seguinte já não dormia mais em casa.



Scottie já mostrava sinais de profunda depressão desde o julgamento, e vai parar numa clínica. Midge tenta animá-lo, mas Scottie tem um olhar vazio, e não sorri. Ela se desespera e perde as esperanças, apesar de ainda ser uma figura maternal, o que fica evidenciado quando ela diz “Você não está perdido. Mãe está aqui”. Também fica claro que uma das razões para Midge sofrer com o estado de Scottie é o fato de ele ter ficado assim por estar apaixonado por Madeleine. Assim, Midge deixa o filme, num tom azul melancólico. Sem sua “mãe”, Scottie parece perder os últimos fios de razão que tinha, ainda que se livre da depressão.


Scottie volta a ter uma vida normal, mas não se livra da obsessão por Madeleine. Ele observa o hotel onde ela costumava se hospedar, e fica intrigado ao ver de longe um carro idêntico ao que ela usava e uma mulher que de longe parece ser ela. Ao se aproximar, ele percebe que é na verdade uma senhora, ainda que Kim Novak provavelmente tenha atuado na tomada em que vemos a mulher de longe. Ele também retorna ao Ernie’s, onde novamente tem a impressão de ver Madeleine. Novamente, Kim Novak atua na parte da cena em que ela é vista de longe, mas, ao voltar para a visão de Scottie quando ela se aproxima, percebe-se que é outra pessoa. O mesmo procedimento ocorre no museu, ainda que seja possível perceber que com certeza não é Kim Novak/Madeleine desde a tomada de longe pela cor do cabelo. Depois de tanto procurar por Madeleine, ele a acha, ainda que esta não seja mais Madeleine. Uma mulher de verde – novamente o verde – atrai sua atenção na rua, e vê-se que é Kim Novak, quase irreconhecível (na primeira vez que vi o filme, achei que era outra atriz), com maquiagem, cabelo, figurino e até modo de andar e falar diferentes. O tema de amor de Herrmann volta a soar forte depois de muito tempo.

 
 Scottie segue “Madeleine” até seu quarto de hotel – o letreiro luminoso é enfatizado -, e a aborda. Scottie entra no quarto, apesar da relutância de Judy, e novamente Kim Novak (também) é mostrada através de um espelho. Quando Scottie deixa o quarto, novamente é usado um filtro – vermelho -, para introduzir e concluir a lembrança de Madeleine do incidente na torre, onde a mulher de Elster, e não ela, foi jogada. Madeleine resolve arrumar as malas, mas ao tocar no velho “vestido” cinza, parece mudar de idéia, e a música, que tinha um tom tenso, se mistura a uma variação do tema de amor. Ela escreve uma carta de despedida onde revela que também amou e ainda ama Scottie, mas desiste e resolve se encontrar com ele. Eles vão ao Ernie’s, e há um movimento de câmera semelhante ao da cena inicial no restaurante para mostrar Scottie e Judy jantando, juntos no mesmo quadro. Judy se veste de lilás, uma cor nunca usada por Madeleine. De novo a mulher parecida com Madeleine aparece, o que deixa Scottie inquieto – e Madeleine percebe.
Eles voltam ao hotel, e o grande letreiro verde é destacado de novo. No quarto, Scottie é mostrado através de um espelho no quarto escuro. A fonte de iluminação principal do quarto é o letreiro verde, e vemos, através dos olhos de Scottie, os contornos de Judy com um fundo (cortinas) verde por trás.


Scottie convence Judy a sair com ele, e logo ele está querendo transformá-la em Madeleine, comprando as roupas que ela usava, e mandando-aela mudar o cabelo para torná-lo igual ao de Madeleine. Scottie tem prazer em levá-la para fazer tudo isso e transformá-la, assim como o próprio Hitchcock fazia questão de ir fazer compras e avaliar o figurino de suas estrelas. Judy parece ser contra, sentindo que o que ele ama de verdade é a cópia de Madeleine, mas acaba aceitando. Inicialmente, Judy não aceita usar o mesmo corte/estilo de cabelo – em espiral, como o motif do filme - que Madeleine, mas Scottie a convence. O tema de amor volta a tocar, mais tenso do que de costume já que Scottie parece nervoso ante a possibilidade de ver Madeleine de novo. Quando vemos Judy de novo através dos olhos de Scottie, ela está cercada por uma luz verde e pálida, o que aliado à roupa cinza a faz parecer um fantasma. Scottie se emociona, e eles se beijam apaixonadamente. O fundo deixa de ter tons verdes e passa a ficar escuro. A câmera gira e gira ao redor do casal, e depois de um tempo Scottie se vê no curral da missão de San Juan Baptista de novo. Ele parece assustado por um momento, mas volta a beijar Judy, e de novo se vêem as cortinas verdes do quarto. Essa cena deve ter sido particularmente especial para Kim Novak, já que ela era uma substituta (Hitchcock queria Vera Miles, mas ela ficou grávida) fazendo uma substituta (Judy-Madeleine) de uma substituta (Madeleine-esposa de Elster).


 Na cena seguinte eles estão no quarto, se arrumando para jantar no Ernie’s uma vez mais (“Afinal, ele é o nosso lugar, não é?”), com a luz verde mais fraca dessa vez. Judy pede para Scottie ajudá-la a colocar um colar, e Scottie percebe imediatamente que aquele é o colar de Carlotta. Scottie num instante percebe/adivinha a verdade, e se propõe a jantar num lugar diferente. Judy aceita, crente de que não há mais jeito de perder Scottie. Scottie a beija sem paixão, e o tema de amor dá lugar a uma música de suspense. 


  Scottie os leva até a velha missão espanhola, dizendo que precisa fazer mais uma coisa antes de se livrar do passado. Judy entra em pânico. Scottie parece assumir uma nova personalidade, e sua voz parece cruel, impiedosa. Ele a leva até a torre, e as escadas. Os temas de Herrmann se misturam até darem lugar a uma música tensa quando Judy finalmente começa a subir as escadas. De novo são usados alguns vertigo zooms, mas eles parecem menos intensos agora. Scottie consegue subir até o topo com Judy/Madeleine, e arranca dela toda a verdade. Judy tenta dizer a Scottie o quanto ela também o ama, o tema de amor toca mais desesperado do que nunca, mas por um instante parece que eles terão um final feliz. Eles se beijam. De repente, se ouvem passos, e uma freira aparece das sombras. Madeleine se assusta e recua, até tropeçar e cair do alto da torre. A freira diz “Que Deus tenha piedade”, que eu particularmente vejo como mais um sinal de religião nos filmes de Hitchock, um cristão convicto. Como se ele pedisse piedade por cometer tal ato. De fato, até mesmo para o padrão de filmes de Hitchcock, o final de Vertigo é talvez o mais frio e cruel. O vilão (Elster), ainda que não apareça muito, não é punido – é a única vez num filme de Hitchcock que isso acontece -, e a “mocinha” morre por acidente. A câmera se afasta da parte de dentro do topo da torre, e observa Scottie de fora. Ele fica parado a alguns passos de cair, observando o corpo de Madeleine, quase sem reação. E com a música parecendo mais sombria do que nunca, e os sinos da Igreja tocando, o filme acaba.



P.S.: uma versão alternativa do filme tem um final diferente. Nele, Scottie aparece ao lado de Midge depois da morte de Madeleine, e eles escutam a notícia de que Gavin Elster foi preso na Europa pelo rádio.


Alguns dizem que este filme é um neo-noir de Hitchcock, e, de fato, ele tem alguns elementos de filme noir. Madeleine pode ser uma das típicas loiras frias de Hitchcock, e portanto uma femme fatale, por levar Scottie à desgraça e loucura, mas faz isso de um jeito bem menos intencional e sedutor do que as musas dos filmes noir. Como semelhança há o fato de que, como uma parcela considerável das femmes fatales, Madeleine trabalha para um homem, mas acaba se apaixonando por outro, geralmente o que ela devia/queria destruir. Há qualidade e atenção dada à trilha sonora e às cores que nenhum filme noir tem (principalmente as cores, já que a grande maioria deles foi filmada em preto e branco). As cenas de investigação de fato são bem ao estilo noir, mas mesmo elas são filmadas numa São Francisco quente e bastante iluminada, ao contrário dos cenários normais de filme noir, geralmente sombrios e/ou noturnos. Também há um espaço e uma profundidade para o lado emocional do personagem principal que aproxima o filme mais dos thrillers psicológicos do que dos filmes noir. De certo modo, Hitchcock elevou os filmes noir, que tinham “saído de moda” alguns anos antes, a um novo patamar.