domingo, julho 08, 2012

Ensaio: Lavoura Arcaica e a Sobrevivência Estética de Luiz Fernando Carvalho


“Como conhecer as coisas, senão sendo-as?”
- Jorge de Lima





            Entre as análises recentes da relação entre cinema e televisão, tendo em vista não só o material audiovisual produzido como também o veiculado pela televisão, é comum se perceber a idéia de que a televisão está, aos poucos, acabando com o cinema, idéia que às vezes é expressa de maneira maniqueísta demais. Por isso, é curioso que Lavoura Arcaica, uma das maiores produções do cinema brasileiro nos últimos tempos tenha sido fruto de uma relação tão próxima entre seu diretor, Luiz Fernando Carvalho, e a televisão. Não que essa proximidade tenha sido positiva, ou boa para ambas as partes. Pelo contrário. Ao final da década de 90, após terminar a telenovela O Rei do Gado, Carvalho sentiu que precisava de uma mudança contundente na sua carreira. Por uma questão de sobrevivência, até. Sobrevivência da sua própria capacidade – e crença nela - de expressão artística. Para exprimir isso, é melhor parafrasear o próprio diretor:

“[...] Chegou um momento em que eu estava bastante insatisfeito com o resultado do meu trabalho na televisão. Fazia leituras para propor objetos que pudessem renovar minha relação com o veículo. Mas o que procurava, realmente, era um texto que me colocasse contra a parede, que me respondesse coisas, que provocasse minha insatisfação com relação aos rumos da minha profissão; ou seja, algo que me fizesse jogar fora a meia dúzia de regrinhas sobre como contar uma historinha, tateava por algo carregado de muita verdade. Não deu outra, dei de cara com o Raduan.” (1)

            A idéia de sobrevivência também vem da fala de Carvalho:

“[...] O que isso [fazer Lavoura Arcaica] talvez represente na minha trajetória como diretor... talvez uma estafa em relação à televisão. Chegou um momento em que eu não consegui sair de uma certa convenção que eu havia proposto. Eu propus uma coisa...
IB: ... Pra você mesmo...
... Sim, até então, de uma certa forma, consegui sobreviver esteticamente dentro daquilo. O que eu propunha dava o tal retorno pra TV, o ibope, mas eu parei por aí. Não consegui mais me renovar dentro disso. Me senti repetindo, me copiando.” (2)

            Em muitos outros momentos ao longo da entrevista que gerou o livro Sobre O Filme Lavoura Arcaica, Carvalho demonstra uma profunda decepção com a televisão e até com seu trabalho dentro dela. E essas críticas parecem muito mais fortes e contundentes do que qualquer outra antes feita à televisão (brasileira, principalmente) e seu papel na cultura contemporânea, já que vêm de um diretor que até então tinha se destacado pela direção de telenovelas globais. Assim, é admirável a sua busca por uma possibilidade de expressão estética mais autêntica do seu papel de diretor, estando numa posição tão confortável comercialmente. Essa noção de ato de sobrevivência em reação à televisão está presente na crítica do filme de Inácio Araujo. Ele diz que “[...] Como a maior parte dos filmes que se fazem hoje parecem ter como aspiração e inspiração a TV, talvez seja apenas natural que um dos raros filmes de cinema de 2001 seja de alguém vindo da TV, isto é, que não sente nenhum complexo em relação a ela nem precise tomá-la por modelo”, e conclui que “Por isso, a passagem ao cinema de Luiz Fernando Carvalho é animadora. É verdade que Carvalho passa por ser o “enfant terrible” da Globo. Ainda assim, enfiar-se numa aventura como Lavoura e sobreviver é um triunfo”. (3)
            Voltando ao começo, o fato é que Carvalho achou o que procurava em Lavoura Arcaica, livro escrito por Raduan Nassar e publicado em 1975. Na verdade, ele tinha um desejo muito forte em relação à Menina A Caminho, coletânea de contos de Nassar lançada em 1997, um ano antes da época de pré-produção do filme Lavoura Arcaica. Houve uma aproximação entre Luiz Fernando Carvalho e Raduan Nassar, e depois do estabelecimento de uma relação de respeito e admiração mútuos, a possibilidade de fazer um filme de Lavoura Arcaica foi passada a Luiz Fernando. Como ele mesmo disse:

“Então logo se fez uma cumplicidade entre nós, sabíamos que pertencíamos à mesma família espiritual, fundamental para poder lidar com as entrelinhas do Lavoura... Mas havia também para Raduan um segredo, que agora eu acho que ele já externou isso, declarando que uma das coisas que mais o fez entregar o Lavoura pra mim quanto o Copo [Um Copo de Cólera] para o Aluísio [Abranches] foi o fato de sermos estreantes em longa-metragem”. (4)

            Luiz Fernando Carvalho podia ser estreante em longa-metragem, mas já conhecia bem a televisão brasileira, e principalmente sua figura maior, a Globo. Por isso, sabia que o único modo de passar Lavoura Arcaica para a linguagem do cinema seria através de um longa-metragem. Lavoura não é material de minissérie para televisão, ou mesmo de microssérie. Claro, é fácil pensar nessa possibilidade agora, depois de Carvalho ter feito algumas microsséries – bastante autorais em comparação com o resto do que se vê na emissora ou na TV brasileira como um todo – baseadas em obras literárias, mas não seria o primeiro exemplo filmes sendo transformados em microsséries para favorecer uma duração maior na história. O mestre sueco Ingmar Bergman já tinha feito isso com Fanny & Alexander e Cenas de Um Casamento, que tiveram uma versão para o cinema e outra – mais longa – para a TV. A duração em si é um fator que favoreceria a criação de uma microssérie. Carvalho até brinca que a versão final, de quase três horas – definitivamente acima dos padrões do cinema -, é sua versão comercial. Essa duração é mais uma afirmação do caráter autoral de Luiz Fernando assim: longo, denso, sem concessões, afastando-o ainda mais do cinema comercial. De qualquer forma, o formato de microssérie não ajudaria o filme, ainda que desse a ele mais cenas. A estrutura narrativa de Lavoura Arcaica e o ritmo que ela impõe não favorecem uma quebra em quatro ou cinco episódios. Tanto o livro quanto o filme fornecem e exigem grande imersão do espectador/leitor na obra, imersão que necessita do máximo de imediatismo possível. Ler o livro com o mínimo de intervalos possível é bastante recompensador para o bom leitor, assim como o transe e a experiência estética em que o bom espectador de Lavoura Arcaica entra com os rodopios da narrativa pode ser facilmente perdido dividindo-se a exibição do filme for dividida. O diretor até cogitou por um bom tempo a idéia de fazer dois filmes, separando a narrativa entre ‘A Partida’ e ‘O Retorno’ assim como no livro, mas abandonou a idéia porque o segundo filme seria bem menor que o primeiro. Não há exemplo mais claro para favorecer este argumento que o fato de o livro ter 194 páginas e a segunda parte (‘O Retorno’) só começar na 143ª. (5) Na primeira exibição do filme, realizada no Canadá, o crítico Fernando Solanas, enaltecendo tanto filme quanto livro que o gerou, comentou que para se fazer um filme de poesia mantendo o equilíbrio, “sem deixar o texto engolir o filme”, era preciso um poeta visual. (6) De fato, Luiz Fernando Carvalho fez poesia cinematográfica ao fazer Lavoura Arcaica, levando até a comparações com o mestre neste quesito, o diretor russo Andrei Tarkovsky. Mas para que essa poesia cinematográfica seja mostrada é preciso um meio que saiba a comportar e dê a ela o devido espaço e respeito, e como este não é o caso da televisão, este meio foi prontamente descartado. Seria um longa-metragem, então.
            A certeza de que seria Lavoura Arcaica o texto que deixaria Luiz Fernando Carvalho mais perto de sua sobrevivência estética veio, mas com ela também vieram muitas dúvidas. Como fazer diálogos a partir de um texto com uma linguagem tão lírica e próxima da poesia – portanto longe da linguagem usada no dia-a-dia tanto atual quanto da época retratada - sem que isso pareça cafona e artificial? Como transmitir através de recursos próprios do cinema a idéia de tempo da memória? Como assumir um ponto de vista particular de um personagem através da câmera? Como deixar claro o toque da tradição mediterrânea (libanesa, para ser mais claro) no filme sem parecer didático ou forçado? De certo modo algumas destas indagações estão presentes na crítica do filme de José Geraldo Couto, que afirma que “O prodígio do filme consiste na superação de uma série de dilemas, alguns falsos, outros reais. O principal deles é: como levar às telas, sem cair no reducionismo ou na literatice, uma obra literária densa, que em sua dicção elevada restaura o peso e o sentido de cada palavra, para além do seu uso cotidiano e banal?” (7) Uma resposta parcial para tudo isso pode estar na frase de Jorge de Lima que abre este ensaio. Segundo Luiz Fernando, “Todo o princípio de treinamento com os atores era de certa forma uma homenagem” a esta “[...] perguntinha”. (8) É óbvio que isso é apenas uma suposição, mas é possível que Luiz Fernando tenha conhecido o poeta (e também pintor, entre outras ocupações) (cristão) surrealista alagoano através de Raduan Nassar, já que este abre Lavoura Arcaica com uma citação de Jorge de Lima: “Que culpa temos nós dessa planta da infância, de sua sedução, de seu viço e constância?” (9)
Antes de dar respostas mais precisas para as perguntas anteriormente citadas, é preciso que fique mais clara a relação entre Luiz Fernando Carvalho e livro. Considerando-se os absurdos que ocorrem com adaptações de livros para o cinema, não seria surpreendente se, com outro diretor no comando, o filme seguisse uma ordem cronológica tradicional. Carvalho afirma que vê a narrativa do livro como um diário de André, mas a oposição ao uso comum dos diários - geralmente associados a meninas pré-adolescentes e seus sonhos juvenis, começando por ‘Querido diário...’ – neste caso é bastante forte. Outro diretor poderia muito bem tornar a transição entre passado-presente-futuro mais clara, conservando a narração em off de André vinda de um tempo futuro, e organizar as cenas da forma cronológica tradicional, com as recordações da infância em primeiro lugar. Mas isso está longe de acontecer nesse caso. Luiz Fernando Carvalho demonstrou – e sempre demonstrará - um respeito extraordinário à obra de Raduan Nassar, ao contrário de outros diretores que trabalham com obras literárias como ponto de partida para seus filmes. Stanley Kubrick, por exemplo, fez sua carreira fazendo filmes baseados em livros – ou seja, não se pode falar em falta de respeito com a literatura por parte dele -, alterando significativamente em seus roteiros vários aspectos das obras, chegando até a gerar discussões e inimizades com seus autores. Carvalho, pelo contrário, não utilizou um roteiro propriamente dito. A base de todos, desde Marco Antônio Guimarães – que fez a trilha sonora – até Walter Carvalho – diretor de fotografia – foi o livro, ou sugestões e conversas tidas com o diretor a partir do texto. Cada um tinha seu livro, e o texto final de cada personagem foi adaptado por cada ator, com só uma “ajeitada” de Luiz Fernando. Este foi o mais perto de fazer um roteiro que o diretor chegou (o que de certa forma valida o fato dele ser colocado como responsável por ‘Direção, Roteiro e Montagem’ nos créditos). A valorização da linguagem de Nassar foi a máxima possível. Até por isso o diretor rejeita completamente a idéia de adaptação para se referir ao filme, porque, segundo ele mesmo, “sempre agi como se estivesse em diálogo com aquilo”. (10)
            Segundo Marco Antônio Guimarães, Luiz Fernando Carvalho se reuniu com todo o elenco e equipe de produção – incluindo ele, Marco Antônio – na mesa da família e por nove horas fez uma leitura do livro enquanto comentava com cada um o que queria para cada cena e colocava algumas músicas de fundo. Essa foi a única base que teve Guimarães para trabalhar. Quanto aos atores, as atuações não eram uma questão de decorar o texto ou não, ou de simplesmente “chegar lá, colocar a roupa e fazer” (10), como disse Selton Mello. Primeiramente, foi decidido que para que o trabalho dos atores funcionasse era preciso certa teatralidade, tanto na sua preparação quanto na atuação em si, por causa da linguagem rebuscada e poética do livro– totalmente fora do naturalismo – e de suas semelhanças com uma ópera ou um grande oratório, como colocou Solanas. Para isso, Luiz Fernando Carvalho resolveu guiar os atores pelas teorias teatrais do francês Antonin Artaud, vindo a explicar essa escolha posteriormente em entrevista:

“Achei que o Artaud era de todos o que mais poderia produzir um estímulo que se comunicasse com o redemoinho do Raduan, com o duplo do Raduan, então eu comecei a fazer as improvisações em cima das teorias do Artaud, das teorias do duplo, as teorias da linguagem invertida, de uma série de conceitos de linguagem, principalmente em cima do André, personagem do Selton. Exercícios assim buscando a não-racionalidade extrema do processo de estudo do texto. Trabalhar mais com as sensações...” (11)

            A preparação sob o método de Artaud foi usada principalmente com Selton Mello, para trabalhar o que Carvalho chama de ‘transe da linguagem’ do livro. Nesse transe, o personagem André viveu o que conta, ao mesmo tempo em que relata o que viveu e observa essa vivência, o que se aproxima dos conceitos de linguagem invertida de Artaud, na qual o ator é sujeito de sua atuação e ao mesmo tempo objeto e observador dela. O curioso é que Artaud é mencionado por Fernando Solanas quando ele fala sobre o filme após sua primeira exibição, dizendo: “Se Antonin Artaud nos visitasse essa noite ele diria: ‘Parabéns, até que enfim temos um filme que deixa o diálogo ser diálogo, e faz um trabalho [com as outras falas] através imagens e metáforas.” (12) Imbuídos pela teoria de Artaud e acreditando fielmente na frase de Jorge de Lima – é notável o quanto os atores parecem falá-la com outras palavras sempre que perguntados sobre o processo de preparação do filme -, os atores e a equipe de produção passaram quatro meses (contando com o período das filmagens) isolados numa antiga fazenda do interior de Minas Gerais – ao lado da fazenda de café reformada para as gravações -, se preparando para se tornar aquela família. Alguns começaram a preparação bem antes, como Simone Spoladore, que começou as aulas de dança com quase um ano de antecedência. Até Raul Cortez, que até os 70 anos sempre tinha recusado viver em comunidade, passou quatro meses assim e mal percebeu. Entre as atividades estavam acordar cedo para tirar leite de vaca, arar a terra, fazer o pão, ter aulas de dança libanesa e, obviamente, longuíssimas improvisações – sempre observadas por Luiz Fernando e Walter Carvalho – permeando tudo isso. Segundo Carvalho, “nas últimas improvisações já surgiam textos, movimentações precisas, que eu ficava anotando no canto da sala. Praticamente não há uma marcação no filme que não tenha saído das sessões de improvisação, o que acaba transformando os atores em reais co-autores do filme”. (13) Por causa dessa vivência em comunidade, todos tiveram que abrir mão de outros trabalhos, sendo Luiz Fernando o primeiro a fazê-lo. Logo no começo, ele chegou para a equipe e disse: “Olhem, cortei o meu vínculo com a televisão. Quem quiser vir vai ter que fazer o mesmo, porque senão não vai dar pra fazer, eu não vou parar um ensaio desses porque fulaninho foi ao Rio de Janeiro fazer um comercial de sabonete”. (13) Com o tempo, as irmãs já dormiam todas no mesmo quarto, os atores já tratavam Raul Cortez como Pai e Juliana Carneiro como Mãe, chegando ao ponto em que Selton Mello passou uma semana separado do resto – com uma pessoa cuidando de sua alimentação para que ele ficasse mais magro -, dormindo no quarto de pensão que serviu de cenário para a cena do diálogo com Pedro. E há unanimidade em declarar que todo esse tempo e essa preparação foram essenciais para o filme e um grande aprendizado para todos os envolvidos.
            Mas é óbvio que o livro de Raduan não foi a única referência artística para os envolvidos na produção do filme, como já ficou evidenciado aqui pela influência de Artaud no trabalho dos atores. Na passagem de livro pra filme era preciso entender e transmitir a “atmosfera bem brasileira, mas dominada por um sopro da tradição mediterrânea” (14) de que fala Alceu Amoroso Lima ao se referir ao livro. Para isso, Luiz Fernando Carvalho, Raduan Nassar e Raquel Couto (produtora, assistente de direção e pesquisadora de elenco do filme) viajaram para o Líbano e depois Sevilha, na Espanha, vindo a realizar o documentário Que Teus Olhos Sejam Atendidos. (15) O documentário e outras informações colhidas nas viagens foram passados à equipe, informações também colhidas do próprio Raduan Nassar – que tem origem libanesa -, como a presença da coalhada na cozinha – segundo Nassar “não há uma cozinha libanesa onde você não encontre uma coalhada pingando”. (16) Também houve extensa pesquisa na constituição do figurino de Beth Filipecki, por exemplo, em que se procurou utilizar roupas e tecidos que eram usados por imigrantes libaneses na década de 30 e 40, ou na direção de arte de Yurika Yamasaki, dando atenção aos mínimos detalhes, desde as panelas da cozinha até o muro de pedra que não deveria ter as pedras lascadas ou quebradas para se assemelhar aos muros da época. Marco Antônio Guimarães, além de ter a leitura do livro como referência – Carvalho também pediu que fosse utilizado um quarteto de violoncelos, dando como referência a trilha sonora de Noites do Sertão -, procurou dar um toque árabe/mediterrâneo à música do filme, e para isso utilizou compassos, ritmos e instrumentos comuns na música árabe. Walter Carvalho, por sua vez, teve na pintura sua maior fonte de inspiração na direção de fotografia. Se Lavoura Arcaica tem traços característicos do barroco, coube a Walter trabalhar a luz para que se ela se aproximasse do barroco, exaltando os contrastes através do uso do chiaroscuro e da própria absorção de luz – o filme se alterna entre momentos de quase completa escuridão e de outros em que se deixa a luz “estourar” o fotograma e inundar a tela. Esse contraste foi bem expressado por Carlos Alberto Mattos em sua análise do filme:

“Em Lavoura Arcaica, não é André – o filho desgarrado que retorna à casa paterna e precipita uma tragédia por conta de sua paixão incestuosa pela irmã – o único elemento a viver um transe. Toda a família o acompanha numa passagem de luz (harmonia, conhecimento) à escuridão (ruptura, inconsciência). Mais que isso, a própria narrativa entra em transe, anda em círculos, salta como louca. A imagem entorta-se, espicha-se, explode em excessos de claridade e negrume.” (17)

A atenção aos detalhes foi tanta que, segundo Luiz Fernando, ele passou praticamente seis meses discutindo com Walter se o filme teria janela 166 ou 235, com Luiz Fernando querendo a primeira e Walter a segunda. Finalmente foi escolhida a janela 166 por ser mais quadrada, fechada, ligada a um cinema de terceiro mundo, sendo assim identificada com André, enquanto a janela 235 é mais panorâmica, aberta, e identificada com a figura do Pai. Segundo Walter, Luiz Fernando conseguiu convencê-lo dizendo:

“Waltinho, a gente tem que filmar um filme cuja linguagem é arcaica, um filme que se enterra, que o chão, a Mãe, o Pai, os ancestrais, as paredes, a umidade das paredes, a marca das paredes, a tábua da mesa têm um tempo, têm um desgaste físico, visual, tem um tempo em cima das coisas... a fotografia tem que vir daí.” (18)

            Luiz Fernando explicou melhor as referências visuais do filme em entrevista, falando:

“Com relação aos pintores, você tem toda a pintura tenebrista espanhola, que representa um período próximo à dominação do Império Árabe na Península Ibérica, com uma grande predominância dos fundos negros e a presença dos dourados, que também dialogam com Rembrandt. As figuras alongadas do El Greco, entram por Caravaggio, Tinziano, Van Gogh, Degas, Munch, Millet, Cézanne... os Cristos do Velásquez, da iconografia russa também, já que a religião daquela família seria cristã ortodoxa.” (19)

            Colocando como perspectiva a relação entre cinema e literatura, Lavoura Arcaica (filme) se curva em reverência ao livro que o originou, ao mesmo tempo em que realça e afirma componentes e características da própria linguagem cinematográfica. Apesar dessa reverência, não se pode dizer que o filme trouxe para as telas o livro – ou partes dele – vírgula por vírgula, de certa forma. Isso porque o estilo de pontuação usado por Raduan em Lavoura Arcaica é distinto de qualquer outro, e a transposição desse estilo para as telas é interessantíssima. Na grande maioria do texto, não são usados pontos finais ao fim dos períodos, a não ser para marcar o fim de um capítulo. Em vez disso, Raduan usa e abusa do ponto-e-vírgula, apesar dele ter a mesma função dos pontos finais no livro. Os diálogos não são separados convencionalmente, sendo usadas apenas aspas para marcar as falas. Exceção à regra é o diálogo de André com o Pai e com Lula, no final do livro, em que é usado o travessão. Os capítulos variam de tamanho, havendo uns com até meia página e outros com mais de dez. Há também trechos enormes entre parênteses, geralmente marcando um tom mais reflexivo e calmo. Diferentes recursos foram utilizados para corresponder a tudo isso. Para os diálogos com o Pai e Lula, Luiz Fernando filma o diálogo de maneira mais tradicional, com planos e contra-planos bem definidos. Entre os trechos em parênteses, muitos são mostrados através de narração em off feita pelo próprio diretor (é interessante como isso de certo modo o aproxima ainda mais de uma autoria do filme, como também do próprio André), ainda que nem todas as narrações em off de pensamentos de André sejam feitas por ele. Inicialmente as narrações de Carvalho foram gravadas por ele apenas como guia, mas assim que Raduan Nassar viu uma das primeiras versões do filme com a voz do diretor narrando o filme, pediu a Luiz Fernando que a mantivesse assim, insistindo: “Não, tem que ser você!” (20) Algumas vezes quem as faz é o próprio Selton Mello, como na cena em que ele dá por falta da sua caixa de quinquilharias. Ismail Xavier aponta diferenças entre a fala de André com Luiz Fernando e a fala de Selton Mello. Isso

“[...] Reforça a oposição entre a voz como peça de drama e a voz como recapitulação, oferecendo dois timbres distintos ao mesmo protagonista. Um é o timbre do conflito, e o outro, da reconciliação. [...] Esta outra voz, a do narrador, exibe uma tonalidade híbrida, às vezes nostálgica, numa dicção própria à elegia que, na evocação, fala em nome de todos (da família). [...] A voz desse narrador não se encarna, ela permanece fora do circuito dos corpos visíveis, aproximando-se da música em seu efeito de envelope sonoro.” (21)

Para passar o ritmo do fluxo da consciência de André, Carvalho dá realidade ao tempo da memória de André através da montagem, alternando entre cenas de André já adulto, tomadas da natureza, cenas da infância e da vivência do André menino na casa, entre outros “tipos”. Configura-se assim uma montagem cinematográfica em fluxo de consciência – que lembra às vezes a de O Espelho, de Tarkovsky -, que torna realidade o tempo da memória, que dá cor e som ao descontrole emocional e verbal de André e varia entre cenas que mostram a dualidade do personagem, sempre anjo e demônio ao mesmo tempo, variando entre momentos profanos e sagrados assim como no livro. Através disso o diretor oferece ao espectador/leitor a chance de fazer uma espécie de montagem própria, preenchendo os vazios com sua imaginação. Isso fica claro quando ele descreve a estrutura de Lavoura “como sendo uma daquelas pinturas islâmicas em cerâmica, normalmente pinceladas sobre superfícies circulares, um prato, um vaso, onde a cada instante, quase desapercebidamente, surgisse um animal, uma flor, as coisas se revelando e você poderia escolher um ramo novo para seguir a cada instante”. (22) Já Ismail Xavier, em sua análise do filme, escreve que “o texto de Raduan imprime uma cadência hipnótica à narrativa. É potente o fluxo de associações em que a sensualidade e a opinião, o relato e a imprecação se expõem como um ritual que persiste em sua unidade, até mesmo quando é intenso o drama, o confronto intersubjetivo envolvendo André, seu pai, seu irmão e sua irmã”. (23)
A câmera também ajuda a aproximar o espectador da proposta do livro, no qual André mostra sua estória e participa dela ao mesmo tempo. Assim, a câmera assume o ponto de vista de André em várias cenas, mas não só o dele, assumindo também a visão de Ana, Pedro, entre outros personagens. Luiz Fernando define assim “o olho” do filme:

“Você provoca o acontecimento, você faz aqui a alquimia teatral toda, a alquimia da vida, mistura os atores, mistura a luz, mistura tudo, e depois você bota a lente. E a lente é um olho, e este olho é o olho do narrador, do Hamlet, que está olhando a tragédia do Édipo como sendo a sua própria tragédia. Essa relação entre passionalidade e reflexão da lente é que existe pra mim em termos de construção cinematográfica. Como se a lente fosse realmente o cinema refletindo sobre aqueles acontecimentos. Daí ser o cinema uma aventura de linguagem, tecendo e constituindo o próprio filme como personagem.” (29)

Até pela própria teatralidade que marca presença no filme, a câmera de Lavoura passa a ser não só um olho de André ou do cinema refletindo sobre aqueles acontecimentos literários, mas também um olho do cinema sobre o teatro. A configuração até simples de alguns cenários como o quarto de pensão ou a mesa da família e o fato de haverem poucas sequências nas quais a câmera se desloca muito em termos de distância tornam vários cenários do filme semelhantes a (e dignos de) um palco teatral. Assim, o cinema revela mais uma vez suas potencialidades, aproveitando todo o ambiente do teatro e explorando-o com recursos como closes e variações de plano entre os atores num diálogo.
Há movimentos maravilhosos quando a câmera assume o ponto de vista de André, como na cena do retorno à casa, quando André se vira para acompanhar um menino que acena do lado de fora do trem, e a câmera passa segundos mostrando só o escuro até que aparece a última chance de ver o menino (que é na verdade o próprio André, dando adeus à sua infância), através de uma fresta de janela – aliás, essa cena ganha muito mais destaque no filme do que no livro, onde se resume a “[...] foi um longo percurso marcado por um duro recolhimento, os dois permanecemos trancados durante toda a viagem que realizamos juntos e na qual, feito menino, me deixei conduzir por ele o tempo inteiro”. (28) Ou na cena em que o menino André entra na igreja feito um balão, e para acompanhar este movimento a câmera sobe e parece flutuar no ar. A proximidade com a visão de André é tanta que muitas vezes a imagem parece desnorteada, torta, desfocada, principalmente nas cenas do quarto de pensão. Outro exemplo está na cena da segunda festa, na qual há o mínimo de planos com André possível – só aparecem seus pés cavando a terra úmida – para reforçar a idéia de que o que ocorreu nessa festa não pode ser alterado, já está no passado – e a dor de André vem justamente da ciência disso. Há também certa nostalgia e carinho no próprio movimento de câmera ao mostrar os utensílios da casa e cenários da infância de André, nos travellings lentos e nos planos-detalhe (como no plano do “pente de cabeça em sua majestosa simplicidade no apanhado de seu coque”). (24)
Mas obviamente não se pode falar em passagem da música do livro para o filme. Uma das “vantagens” do cinema em relação à literatura, a música funciona em Lavoura Arcaica como uma espécie de camada sonora e emocional, ao mesmo tempo em que reforça o tal sopro mediterrâneo. De fato, a música não está no livro. Outra coisa que pode-se dizer que não está no livro é a luz, mas seu uso dramático foi ao menos sugerido no livro, como na cena do quarto de pensão – exatamente a mesma cena que Carvalho destaca quando fala desse uso da luz, se referindo à escuridão do quarto como um mergulho na escuridão e na tristeza de André -, quando Pedro conta a André o triste estado em que se encontra Ana depois de sua partida. André narra (as aspas após ‘tanto’ são do próprio livro, para indicar o fim da fala de Pedro): “[...] ninguém lá em casa nos preocupa tanto” ele disse e eu vi que meu quarto de repente ficou escuro, e eu só conhecia aquela escuridão, era uma escuridão a que eu de medo fechava sempre os olhos”. (24)
            Mesmo com tanta fidelidade, há cenas que não estão no livro, como era de se esperar (há aqui o risco de eu não me lembrar de ter lido determinada cena no livro), mas essas escolhas acabam sendo compreensíveis e aumento a qualidade do filme. Parece haver uma preocupação maior em mostrar o sofrimento da família, sofrimento esse que aparece não só através de cenas, mas também da visualidade e mera presença na tela dos personagens. Não há no livro passagens em que a Mãe acalenta e consola Ana depois de André ter partido, e ele não olha para trás quando sai de casa, encontrando o olhar da mãe. Também não há referência a uma cena em que André se masturba no quarto enquanto pensa na irmã a se olhar no espelho, apesar de que nas outras cenas de masturbação esse ato não fica tão claro através das palavras quanto no filme através das imagens. No diálogo entre André e o Pai, há antes dele um breve e emocionante encontro de André com sua Mãe, no qual André finalmente vê o estrago que tinha feito naquele rosto (de certo modo a falta desse plano é recompensada pela cena da partida de André, em que vemos a Mãe chorar), e fica mais evidente que o recuo de André no diálogo foi em parte por amor à Mãe, que o abraça e protege antes ainda do diálogo terminar. A maior diferença entre filme e livro nesse quesito está provavelmente na cena do sermão do Pai sobre a paciência (‘Era uma vez um faminto’). Neste capítulo do livro - há um capítulo só para este sermão -, André dá voz ao pai, e no final apresenta seu descontentamento com o sermão num longo trecho entre parênteses. No filme, o diretor deixou mais claro que as máscaras sociais dos personagens nesse simulacro se referem ao próprio âmbito familiar, utilizando Selton Mello e Raul Cortez na cena e colocando-a em preto e branco. Também não há referência nenhuma a André se enterrando sob as folhas ao final. No geral, uma das maiores forças do filme está em manter as perguntas que ficam sem resposta no livro. Quanto tempo André passa longe de casa? Ele fala em adolescência e percebe-se as marcas do tempo na sua barba e cabelos, mas ele realmente chegou a passar anos fora de casa? Por que Ana não fala? O que ocorre com a família após o ataque do Pai à Ana? Essas e outras perguntas, como outras coisas, ficam à mercê da imaginação do espectador.

            Luiz Fernando Carvalho sobreviveu, enfim. Seu filme foi um sucesso de crítica – não tanto de público, apesar de ter fãs fiéis até hoje – e conquistou vários prêmios ao redor do mundo. Ele voltou enfim para a Globo, onde fez mais uma novela das 9, Esperança, que teve uma das piores audiências entre da década entre a categoria – o que de certo modo foi uma vitória para ele. Essa foi sua última novela, e Luiz Fernando passou a última década fazendo minisséries para a emissora: Os Maias, Capitu, Hoje É Dia de Maria e Afinal, O Que Querem As Mulheres?. Esses trabalhos podem não ter atingido o mesmo nível de qualidade de Lavoura Arcaica, mas demonstraram sua capacidade de auteur (mais digna de louvor ainda por isso se dar numa emissora voltada para o lucro) e sua atenção à linguagem visual, valorização das palavras da boa literatura e da teatralidade. Apesar desse ser o desejo de uma quantidade considerável de pessoas, ele não veio a realizar outro filme até agora. Ele declarou em entrevista:

“Olhem... Pelo pouco que eu consegui colocar aqui, as razões que me levaram a filmar o Lavoura... são razões... são cacos de vários lugares, estilhaços, que me ajudaram a formar o filme. Portanto, estou digerindo um pouco esse processo, e fica difícil ainda falar sobre o filme, assim como também fica difícil ainda estar aberto para um outro filme. Talvez seja mais fácil estar aberto para um outro tipo de produção que necessite menos da minha disponibilidade emocional.”

Foi veiculado que ele já conseguiu patrocínio (financiamento) para fazer uma “adaptação” de A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector – outro livro praticamente “infilmável”. Fica implícito no livro Sobre O Filme Lavoura Arcaica que ele estava refletindo sobre esse projeto (ou uma “adaptação” de outro livro de Clarice) (e chegou a comentar isso nos bastidores) desde então. Foram praticamente cinco anos desde a pré-produção até o acabamento de Lavoura Arcaica, então só nos resta seguir os sermões do Pai e ter paciência, não questionando o tempo. Tendo em mente este ensinamento, fecho assim este ensaio com as palavras do Pai (ou com o último capítulo do livro), assim como o livro e o filme.


“(Em memória de meu pai, transcrevo suas palavras: “e, circunstancialmente, entre posturas mais urgentes, cada um deve sentar-se num banco, plantar bem um dos pés no chão, curvar a espinha, fincar o cotovelo do braço no joelho, e, depois, na altura do queixo, apoiar a cabeça no dorso da mão, e com olhos amenos assistir ao movimento do sol e das chuvas e dos ventos, e com os mesmos olhos amenos assistir à manipulação misteriosa de outras ferramentas que o tempo habilmente emprega em suas transformações, não questionando jamais sobre seus desígnios insondáveis, sinuosos, como não se questionam nos puros planos das planícies as trilhas tortuosas, debaixo dos cascos, traçadas nos pastos pelos rebanhos: que o gado sempre vai ao poço”.)” (26)




P.S.: já que tanto se fala (mal) das traduções de títulos de filmes no Brasil, é digna de nota a generosidade que os tradutores tiveram com Lavoura Arcaica, pelo menos os ingleses e franceses. Já que não puderam se utilizar da combinação das letras ‘a’ formando a bela sonoridade de LavourArcaica, eles inventaram (e acertaram). O título em inglês é To The Left Of The Father (À Esquerda do Pai), que exprime precisamente o problema-chave da família (não se esquecendo que o lado esquerdo é tradicionalmente o lado maldito, tanto que na Antiguidade havia casos de se imobilizar e até ferir a mão esquerda para “converter” canhotos, e a ‘esquerda’ em italiano é ‘sinistra’), além de dar ao título maior conotação religiosa (referência inversa a ‘Está sentado à direita de Deus Pai Todo-Poderoso...’). Em francês o título ficou A La Gauche Du Pére, que remete ao gauche (torto) de Drummond, e ao irmão torto.





Referências Bibliográficas

(1) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 34.
(2) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 30.
(3) ARAÚJO, Inácio; 2001; Longa é exceção exemplar de cinema do país; Folha de São Paulo.
(4) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 39.
(5) NASSAR, Raduan. Lavoura Arcaica; 3ª edição.
(6) Uma Conversa (entrevista com Fernando Solanas); 2001.
(7) COUTO, José Geraldo; 2001; Lavoura Arcaica radicaliza linguagem; Folha de São Paulo.
(8) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica, 2002; pág. 105.
(9) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; pág. 5.
(10) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 34.
(11) COUTO, Raquel; Nosso Diário: Memórias da Filmagem de Lavoura Arcaica; 2002.
(12) Uma Conversa (entrevista com Fernando Solanas); 2001.
(13) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 94.
(14) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; Comentário de Alceu Amoroso Lima sobre o livro.
(15) CARVALHO, Luiz Fernando e COUTO, Raquel; Que Teus Olhos Sejam Atendidos; 1998.
(16) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 78.
(17) MATTOS, Carlos Alberto; 2002; As Paredes da Casa (introdução de Sobre O Filme Lavoura Arcaica); pág. 10.
(18) COUTO, Raquel; Nosso Diário: Memórias da Filmagem de Lavoura Arcaica; 2002.
(19) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 101.
(20) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 55.
(21) Ismail Xavier Fala Sobre Lavoura Arcaica. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=WYxlwHRwmsY.
(22) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 68.
(23) XAVIER, Ismail; A Geometria Barroca do Destino; 2006.
(24) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; pág. 37.
(25) Luiz Fernando Carvalho Sobre O Filme Lavoura Arcaica; 2002; pág. 57.
(26) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; pág. 193.
(27) CARVALHO, Luiz Fernando; Lavoura Arcaica; Europa Filmes; 163 min; 2001.
(28) NASSAR, Raduan; Lavoura Arcaica; 3ª edição; pág. 147.
(29) COUTO, Raquel; Nosso Diário: Memórias da Filmagem de Lavoura Arcaica; 2002.



*ensaio escrito para a cadeira Cinema e Literatura da UFPE*

Ran


            Deixei o terreno preparado pra ver Ran (Akira Kurosawa). Não vi nenhum outro filme no dia antes de vê-lo, ao invés disso descansei por umas horas. Tudo para poder passar as mais de duas horas e meia do filme sem bocejos ou olhos vermelhos. Esperei que todos fossem dormir, peguei um lanche na cozinha e comecei. Sem demora comecei a entrar no ritmo do filme, ainda que os diálogos em japonês causassem certa confusão, misturada à curiosidade com que se vê algo incomum – os gritos indignados dos homens japoneses, principalmente, isso jamais vi igual em qualquer outra língua. Tomei gosto pelas montanhas cobertas de grama verde, pelos olhares fugidios das mulheres, pelos longos trajes que parecem flutuar centímetros acima do chão, pela dureza das armaduras reluzentes, pelas mãos rápidas ao sacar da bainha as katanas e pelos movimentos precisos que essas executam no ar, pelos tambores que selam a união entre imagem e som, confluindo para dar ao filme um aspecto inconfundivelmente japonês. Também é inconfundivelmente japonês o senso de tradição que é passado através de todos os personagens, tradição presente nos cumprimentos, nos menores que se curvam perante os maiores, nos lugares tomados por cada um nas refeições, no respeito – ainda que ele disfarce a hipocrisia -, respeito esse que torna absurdo o fato de Kaede (essa com olhar desafiador, agudo, como uma raposa calculando um bote) sentar-se acima do patriarca da família Ichimonji na “mesa” de família.
Antes da metade meu pai chegou, e depois de fraca resistência sentou numa poltrona e se pôs a ver o filme comigo, justamente numa das cenas que mais o agradaria - se eu tivesse que adivinhar -, a da primeira batalha. Percebendo seu interesse vindo na forma de perguntas, tentei resumir rapidamente as relações entre os personagens e o que se passava na tela. Não foi difícil de entender ou apreciar a beleza incontestável que se mostra até na dança sangrenta dos samurais em batalha, e na dor visível passada por seus ferimentos. Meu pai assistiu o filme por mais de quinze minutos, mas ao perceber que ele não acabava na primeira batalha, lembrou-se da hora e do cansaço e perguntou qual era a duração. Não fazia idéia de quanto tempo tinha se passado desde o começo, mais parecia que mais de uma hora faltava para o fim. Ele foi dormir, e brincando me disse para contar como o filme acabava no dia seguinte.
Mas como? Como colocar em palavras o que se sucedeu sem perceber então que é quase impossível transcrever o filme para um simples relato? Como falar das imagens do vento, do céu, do fogo? Da câmera que não encobre nada durante o horror da batalha, mas que nos deixa também de mãos atadas, sem poder interferir nos desejos dos homens – como Buda? Como falar do movimento orquestrado de centenas de soldados em guerra, ou do simples balançar de suas flâmulas ao vento da montanha? Do olho da câmera que ao longe vê, desolado, aquele cujos olhos não vêem? Como falar da morte de Kaede, a única morte em que Kurosawa faz questão de mostrar o derramamento de sangue, que violentamente mancha... mancha não, lava a parede e sua palidez imaculada com um esguicho, uma tinta eterna de sangue ainda pulsante? (Kaede, criada desde pequena em meio ao sangue das batalhas, que viu sua família ser massacrada e sua vida atrelada ao filho daquele que matou seus pais; catalisadora de todo o caos que toma a família Ichimonji, responsável por tanto sangue a manchar o solo japonês, sangue, sangue vermelho... vermelho marcado/incrustado na parede, no chão, na roupa, na espada)



Impossível. Melhor nem tentar.
No dia seguinte ele realmente perguntou como o filme acabava, ainda que só depois de algumas horas – me dando a impressão de que ele se esqueceria. Fiquei calado. Ele não insistiu, ainda bem, e fomos almoçar. Talvez eu ainda lhe conte... vai que ele peça pra ver o filme.