Deixei o terreno preparado pra ver Ran (Akira Kurosawa). Não vi nenhum
outro filme no dia antes de vê-lo, ao invés disso descansei por umas horas. Tudo para poder
passar as mais de duas horas e meia do filme sem bocejos ou olhos vermelhos.
Esperei que todos fossem dormir, peguei um lanche na cozinha e comecei. Sem
demora comecei a entrar no ritmo do filme, ainda que os diálogos em japonês
causassem certa confusão, misturada à curiosidade com que se vê algo
incomum – os gritos indignados dos homens japoneses, principalmente, isso
jamais vi igual em qualquer outra língua. Tomei gosto pelas montanhas cobertas
de grama verde, pelos olhares fugidios das mulheres, pelos longos trajes que
parecem flutuar centímetros acima do chão, pela dureza das armaduras reluzentes, pelas
mãos rápidas ao sacar da bainha as katanas
e pelos movimentos precisos que essas executam no ar, pelos tambores que selam
a união entre imagem e som, confluindo para dar ao filme um aspecto
inconfundivelmente japonês. Também é inconfundivelmente japonês o senso de
tradição que é passado através de todos os personagens, tradição presente nos
cumprimentos, nos menores que se curvam perante os maiores, nos lugares tomados
por cada um nas refeições, no respeito – ainda que ele disfarce a hipocrisia -,
respeito esse que torna absurdo o fato de Kaede (essa com olhar desafiador,
agudo, como uma raposa calculando um bote) sentar-se acima do patriarca da
família Ichimonji na “mesa” de família.
Antes da metade meu pai chegou, e depois de fraca
resistência sentou numa poltrona e se pôs a ver o filme comigo, justamente numa
das cenas que mais o agradaria - se eu tivesse que adivinhar -, a da primeira batalha. Percebendo seu interesse
vindo na forma de perguntas, tentei resumir rapidamente as relações entre os
personagens e o que se passava na tela. Não foi difícil de entender ou apreciar
a beleza incontestável que se mostra até na dança sangrenta dos samurais em
batalha, e na dor visível passada por seus ferimentos. Meu pai assistiu o filme por mais de
quinze minutos, mas ao perceber que ele não acabava na primeira batalha, lembrou-se
da hora e do cansaço e perguntou qual era a duração. Não fazia idéia de quanto
tempo tinha se passado desde o começo, mais parecia que mais de uma hora
faltava para o fim. Ele foi dormir, e brincando me disse para contar como o
filme acabava no dia seguinte.
Mas como? Como colocar em palavras o que se sucedeu
sem perceber então que é quase impossível transcrever o filme para um simples
relato? Como falar das imagens do vento, do céu, do fogo? Da câmera que não
encobre nada durante o horror da batalha, mas que nos deixa também de mãos
atadas, sem poder interferir nos desejos dos homens – como Buda? Como falar do
movimento orquestrado de centenas de soldados em guerra, ou do simples balançar
de suas flâmulas ao vento da montanha? Do olho da câmera que ao longe vê,
desolado, aquele cujos olhos não vêem? Como falar da morte de Kaede, a única morte em que Kurosawa faz
questão de mostrar o derramamento de sangue, que violentamente mancha... mancha
não, lava a parede e sua palidez imaculada com um esguicho, uma tinta eterna
de sangue ainda pulsante? (Kaede, criada desde pequena em meio ao sangue das
batalhas, que viu sua família ser massacrada e sua vida atrelada ao filho
daquele que matou seus pais; catalisadora de todo o caos que toma a família
Ichimonji, responsável por tanto sangue a manchar o solo japonês, sangue,
sangue vermelho... vermelho marcado/incrustado na parede, no chão, na roupa, na
espada)
Impossível. Melhor nem tentar.
No dia seguinte ele realmente perguntou como o
filme acabava, ainda que só depois de algumas horas – me dando a impressão de
que ele se esqueceria. Fiquei calado. Ele não insistiu, ainda bem, e fomos
almoçar. Talvez eu ainda lhe conte... vai que ele peça pra ver o filme.
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