domingo, julho 08, 2012

Ran


            Deixei o terreno preparado pra ver Ran (Akira Kurosawa). Não vi nenhum outro filme no dia antes de vê-lo, ao invés disso descansei por umas horas. Tudo para poder passar as mais de duas horas e meia do filme sem bocejos ou olhos vermelhos. Esperei que todos fossem dormir, peguei um lanche na cozinha e comecei. Sem demora comecei a entrar no ritmo do filme, ainda que os diálogos em japonês causassem certa confusão, misturada à curiosidade com que se vê algo incomum – os gritos indignados dos homens japoneses, principalmente, isso jamais vi igual em qualquer outra língua. Tomei gosto pelas montanhas cobertas de grama verde, pelos olhares fugidios das mulheres, pelos longos trajes que parecem flutuar centímetros acima do chão, pela dureza das armaduras reluzentes, pelas mãos rápidas ao sacar da bainha as katanas e pelos movimentos precisos que essas executam no ar, pelos tambores que selam a união entre imagem e som, confluindo para dar ao filme um aspecto inconfundivelmente japonês. Também é inconfundivelmente japonês o senso de tradição que é passado através de todos os personagens, tradição presente nos cumprimentos, nos menores que se curvam perante os maiores, nos lugares tomados por cada um nas refeições, no respeito – ainda que ele disfarce a hipocrisia -, respeito esse que torna absurdo o fato de Kaede (essa com olhar desafiador, agudo, como uma raposa calculando um bote) sentar-se acima do patriarca da família Ichimonji na “mesa” de família.
Antes da metade meu pai chegou, e depois de fraca resistência sentou numa poltrona e se pôs a ver o filme comigo, justamente numa das cenas que mais o agradaria - se eu tivesse que adivinhar -, a da primeira batalha. Percebendo seu interesse vindo na forma de perguntas, tentei resumir rapidamente as relações entre os personagens e o que se passava na tela. Não foi difícil de entender ou apreciar a beleza incontestável que se mostra até na dança sangrenta dos samurais em batalha, e na dor visível passada por seus ferimentos. Meu pai assistiu o filme por mais de quinze minutos, mas ao perceber que ele não acabava na primeira batalha, lembrou-se da hora e do cansaço e perguntou qual era a duração. Não fazia idéia de quanto tempo tinha se passado desde o começo, mais parecia que mais de uma hora faltava para o fim. Ele foi dormir, e brincando me disse para contar como o filme acabava no dia seguinte.
Mas como? Como colocar em palavras o que se sucedeu sem perceber então que é quase impossível transcrever o filme para um simples relato? Como falar das imagens do vento, do céu, do fogo? Da câmera que não encobre nada durante o horror da batalha, mas que nos deixa também de mãos atadas, sem poder interferir nos desejos dos homens – como Buda? Como falar do movimento orquestrado de centenas de soldados em guerra, ou do simples balançar de suas flâmulas ao vento da montanha? Do olho da câmera que ao longe vê, desolado, aquele cujos olhos não vêem? Como falar da morte de Kaede, a única morte em que Kurosawa faz questão de mostrar o derramamento de sangue, que violentamente mancha... mancha não, lava a parede e sua palidez imaculada com um esguicho, uma tinta eterna de sangue ainda pulsante? (Kaede, criada desde pequena em meio ao sangue das batalhas, que viu sua família ser massacrada e sua vida atrelada ao filho daquele que matou seus pais; catalisadora de todo o caos que toma a família Ichimonji, responsável por tanto sangue a manchar o solo japonês, sangue, sangue vermelho... vermelho marcado/incrustado na parede, no chão, na roupa, na espada)



Impossível. Melhor nem tentar.
No dia seguinte ele realmente perguntou como o filme acabava, ainda que só depois de algumas horas – me dando a impressão de que ele se esqueceria. Fiquei calado. Ele não insistiu, ainda bem, e fomos almoçar. Talvez eu ainda lhe conte... vai que ele peça pra ver o filme.

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