quarta-feira, fevereiro 27, 2013

A Embriaguez do Sucesso e o Jornalismo FDP

Por baixo dos panos e das aparências, a Nova Iorque do final dos anos 50 onde A Embriaguez do Sucesso (Alexander Mackendrick, 1957) se passa é uma Nova Iorque sórdida, mascarada, fria. Uma cidade de filme noir. Entre um bar de jazz coberto pela fumaça dos cigarros e outro, os habitantes que nela habitam parecem ser mesquinhos, corruptos e gananciosos. Por trás dos holofotes e das luzes da Broadway, sempre parece haver uma sujeira, um segredo a ser descoberto, uma briga.


É nesse ambiente que vivem os personagens principais do filme, Sidney e JJ. As designações do emprego dos dois (principalmente de Sidney) variam entre ‘jornalista’, ‘publicitário’, ‘assessor de imprensa’ e ‘colunista’, mas o fato é que JJ tem uma coluna própria num dos principais jornais de Nova Iorque, e Sidney fornece a ele notas sobre seus clientes. Sua coluna é lida todos os dias por 60 milhões de leitores ao redor do mundo. Os caminhões que levam os pacotes de jornais todos os dias carregam o mote ‘Vá com o Globo – Leia JJ Hunsecker, Os Olhos da Broadway’. Os olhos de JJ parecem estar sempre em destaque, vigiando todos os lugares, sempre à procura de mais um furo, mais um escândalo a ser impresso, mais um elogio a ser feito à pessoa certa. Num tempo sem internet ou televisão, em que o jornal impresso só tinha o rádio-jornal como competidor entre os meios de comunicação, um homem como JJ era um deus. Ele podia “dizer a presidentes o que fazer”, como diz Sidney. 


Logo nos primeiros minutos de filme, um cliente de Sidney já deixa claro que o paga para que ele invente mentiras – a serem publicadas por JJ – que sempre parece estar coberto ou mascarado por alguma sombra. Sidney é um mentiroso a nível profissional e “pessoal”, que faz isso por dinheiro e pelo bel prazer de mentir, ou de contar meias-verdades. Afinal, a manipulação da informação (a cargo de quem escreve) sempre esteve presente no jornalismo. Nada que não aconteça em qualquer redação a qualquer momento. Não é um publicitário ambicioso como Sidney que vai abdicar do hábito de mentir por uma noção equivocada de consciência. Sidney, como o jornalista aproveitador Charles Tatum de A Montanha dos Sete Abutres (Billy Wilder, 1951) aprendeu logo cedo que enganar e desconsiderar o leitor/telespectador é o melhor negócio. Entretanto, os dois personagens parecem viver realidades bem distintas. O modo como Tatum consegue burlar os jornais – os rivais e até o próprio – e manipula sua fonte de notícias é cômico, beirando o surreal, a rapidez com que se forma todo um complexo ao redor da Montanha chega a ser exagerada, e Tatum parece mais perverso e inconsequente – pelo menos durante a maior parte do filme. Sidney não deixa de tecer sua teia e organizar suas armadilhas e jogos de mentiras aqui e ali, mas parece sempre à mercê de JJ, e ele é mais mesquinho e egoísta – chegando ao ponto de parecer atormentado – do que propriamente perverso. De fato, A Montanha como um todo parece mais maniqueísta e exagerado que Embriaguez, um filme que parece transitar sempre entre sombras.


Se ele realmente gosta de escrever para os jornais é questionável, pois joga jornais no lixo a qualquer momento, não importando sua sorte. O que ele quer é chegar ao topo, ao sucesso – ou seja, ter uma coluna só sua -, não que pra isso ele tenha que enganar, extorquir, chantagear, se envolver em espancamentos, plantar informações falsas. Sua referência, seu guia, seu objeto de admiração – misturada ao ódio -, é JJ. Infelizmente não há uma única figura em seu meio em quem ele possa se ancorar, talvez tomar como exemplo de integridade (“um pacote de fogos de artifício esperando um fósforo”). Os outros dois colunistas que aparecem no filme, apesar de deixarem claro que odeiam JJ, são iguais ou piores que ele. Parecem odiar o sucesso obtido por ele, não sua conduta. 


Enfim, a verdade é que eu poderia fazer uma cartilha enorme listando todos os preceitos e normas de condutas do jornalismo respeitável que Sidney e JJ quebram no filme, mas isso seria chato, e eu não conheço tantas normas de conduta assim. Comportamentos à parte, é delicioso assistir Burt Lancaster e Tony Curtis sendo tão podres e mesquinhos - enquanto olho nos olhos dos dois mais uma vez para descobrir se eles realmente queriam dizer os absurdos que dizem. Ou vê-los se traindo e se reconciliando, trocando farpas e acusações a cada cena que passa. Não parece haver nos dois um mínimo de respeito pelo jornal (tanto aquele jornal específico como o meio de comunicação como um todo) ou pelo público. Os princípios do jornalismo que se danem. Sim, a coluna social historicamente não é exatamente a parte mais respeitada do jornal, mas continua sendo parte dele. JJ é rápido ao evocar o respeito para com seus leitores, mas sua noção de responsabilidade é, no mínimo, confusa. Que valor tem 60 milhões de leitores ao redor do mundo se JJ engana sem pudor a própria irmã? E o dever de informar os leitores com honestidade, clareza, transparência e ética, que deve ser tão forte no colunista de 60 milhões de leitores quanto no de 60? Mas talvez isso seja pedir demais. Talvez seja pedir demais também que um homem que tem uma praticamente uma biblioteca em seu apartamento (nada mais que a cobertura de um hotel nobre) tire algum de seus livros da prateleira e talvez aprenda alguma coisa sobre integridade (como se livros realmente pudessem tornar uma pessoa íntegra, mas enfim...). Ou que não faça de gestos nobres uma coisa rara. Rapidamente um desses gestos é transformado em enganação – ou seja, lucro – por Sidney, num dos momentos que melhor exemplifica o sarcasmo frio e cruel do filme.


JJ e Sidney passam o filme inteiro se surpreendo com a falta de escrúpulos um do outro num misto de admiração, sarcasmo e humor, enquanto tentam separar Susie, irmã de JJ, de Stevie, um músico de jazz que obviamente não é bom – ou rico, ou maleável, o que seja – o suficiente para ela, o que eventualmente eles conseguem. Mas não sem consequências trágicas. JJ se vê separado da sua irmã, e Sidney fica mais longe do sucesso do que quando começou a empreitada. A cena final, que determina o destino dos três, traz um triunfo amargo e ingrato para JJ. Em vez de atender à súplica de Sidney e contar a verdade – o que poderia o salvar -, Susie se cala, julgando que Sidney é merecedor de castigo, mesmo que injusto. Neste momento a menina de 19 anos se torna mais perto de ser irmã de JJ do que nunca, já capaz de entender que se faz jornalismo através da manipulação de informações – ou, no caso, o ocultamento delas. O plano de Susie passiva enquanto observa seu irmão espancar Sidney dura apenas alguns segundos, mas é um dos momentos mais tristes e de maior ressonância emocional do filme. Rapidamente ela se arrepende, e ouve um “Você está crescendo” de um Sidney já com a boca ensanguentada, o que soaria quase como um elogio ou um cumprimento se não fosse dito por um homem tão detestável. Susie sobrevive à Manhattan corrupta de A Embriaguez do Sucesso, mas nem sem manchar sua integridade e sua inocência de menina.

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