quarta-feira, fevereiro 27, 2013

(V Janela Internacional de Cinema do Recife) Ao Sul do Meu Corpo



Monumento (Gregorio Grasiozi) começa num cinza absoluto – de muito mais tons que cinquenta -, com contornos pouco discerníveis. Imagens de linhas tortas em meio às sombras e o céu cinza vão se seguindo, partindo dos pormenores e detalhes para formar em sua totalidade o Monumento às Bandeiras, de Brecheret. Entre o barulho da metrópole se ouvem alguns cavalos relinchando, sons metálicos, passos, como uma trilha sonora da batalha de um filme que nunca foi filmado. Mas não há movimento, mesmo que a câmera se estenda no observar das esculturas a ponto de parecer acreditar que, se filmadas por mais alguns segundos, as rochas ganhariam vida. As rochas não adquirem vida nova, mas recebem dos espectadores um olhar renovado, proporcionado pela câmera que contempla amiúde os seres esculpidos em pedra como se fizesse deles personagens de um filme. Através da bela fotografia em preto e branco, o Monumento é situado enfaticamente em meio à metrópole cinzenta - mostrada claramente apenas nas últimas tomadas -, intrínseco ao espaço urbano de São Paulo. A obra e a cidade, indivisíveis.

A sinopse de Salamaqats (Andrés Schaffer) já adianta: “As ruas e um mistério”. Assim como Monumento, este curta se utiliza de uma dramática dissociação entre imagem e som, mas de forma contrária. Enquanto em Monumento a câmera passeia ao redor de objetos imóveis a fim de estudá-los em seus mínimos detalhes, em Salamaqats a câmera observa pessoas dançando em ritmo frenético sem proximidade, quase passivamente. E se Monumento atribui aos objetos inanimados sons que eles não podem produzir, Salamaqats tira do registro dos dançarinos a música que os fez dançar, nos dando apenas ruídos de cidade que são os mesmos em Belo Horizonte, São Paulo, Recife e Nova Iorque. De início, fica até difícil saber o que se passa na tela. Ao mostrar dançarinos de rua sem a música que provoca neles a dança, Salamaqats destitui parte do sentido contido naquele ato, ao mesmo tempo em que possibilita a atribuição de novos sentidos e percepções. O que os faz dançar, afinal, numa atividade que parece até uma resistência à paisagem, cheia de pessoas a ir e vir como se fossem todas originadas da mesma fábrica? O mistério permanece. E estranhamente, Salamaqats causa um distanciamento em relação ao espectador maior que Monumento, apesar de lidar com pessoas, e não esculturas.

Animador (Cainan Baladez e Fernanda Chicolet), por sua vez, é protagonizado por Lídia, que trabalha num parque de diversões fantasiada de coelho, esperando para ser jogada numa piscina pelo arremesso infeliz de uma criança. Ela parece achar ridículo o seu uniforme de trabalho, mas resiste quando um colega propõe que ela seja um leopardo por um dia. Sem a fantasia de coelho, se mostra tímida e desajeitada, sem cuidados com a aparência. Quando enfim troca de fantasia, parece não saber o que fazer. Quando lhe dão outra fantasia, parece desajeitada e fora de lugar, como que no corpo de outro. Quando lhe pedem pra que tire apenas a cabeça de coelho, então... crises e crises de identidade. Animador mostra a jornada diária de Lídia sem tanta originalidade, mas guarda algumas doses de bom humor, e um trunfo ainda maior: cenas de sonho sem distinção clara ou aparente da realidade. Um parque de diversões, hábitat de Lídia, não é um mundo fantasioso, afinal?

Vestido de Laerte (Claudia Priscilla e Pedro Marques), ao investir no potencial de personagem da figura de Laerte, consegue apenas retratá-lo de forma divertida, mas pouco intrusiva. Laerte é filmado em toda a graça e elegância de seu “travestismo”, e sua feminilidade é prontamente abordada, mas como que através de um filtro. Laerte olha pra câmera e sorri, parecendo ser protegido pela máscara das aparências – além da pesada maquiagem -, e a falta de intrusão além dessas aparências resulta num personagem que encobre seu corpo tanto quanto sua alma. Vestido de Laerte anda em círculos e auto-referências – presentes em várias das cenas de humor – sem penetrar no universo de seu personagem, mantendo uma distância segura e não expondo-o além daquela camada de conhecimento que sempre parecemos ter de nossas figuras públicas.

Com Orwo Foma (Karen Black e Lia Letícia) voltamos a um jogo de dissociação entre imagem e som, desta vez em nível equivalente de ruído. Duas pessoas – uma branca e uma negra, quase irreconhecíveis por baixo de tanta maquiagem – passam cremes e shampoos, e entre os ruídos se ouvem anúncios publicitários afirmando a beleza feminina (“Tudo é lindo numa mulher”). Mas as imagens se opõem ao som de forma violenta, e o que se vê é deterioração e distorção. Mesmo com seu posicionamento político forte e claro, Orwo Foma parece estar tão longe da realidade – e ao mesmo tempo perto do experimentalismo e da videoarte - que, apesar de pôr em evidência as contradições e a artificialidade da indústria da beleza, falha em – ou esquece de - propor novos caminhos de forma enfática o suficiente ao não mostrar efetivamente sua própria visão do que é belo numa mulher. Não peço que se mostrem pernas, seios e rostos ligeiramente diferentes do que os padrões de beleza ditam, como fazem algumas propagandas de valorização da “real” beleza feminina. Apenas pés. No chão.

O programa é fechado com A Dama do Estácio (Eduardo Ades), uma homenagem ao filme Falecida (Leon Hirszman, 1965) – ambos estrelados por Fernanda Montenegro. A atriz, com o talento que lhe é peculiar desde 1965, interpreta com maestria a prostituta Zulmira, que um dia acorda obcecada com a ideia de que vai morrer e de que precisa de um caixão. Fernanda se expõe tanto física quanto emocionalmente para dar vida a uma personagem contraditória, que parece entrar em depressão ao constatar que não pode mais exercer sua profissão da mesma maneira devido à idade, mas ao mesmo tempo não abdica de certos prazeres terrenos, como uma mesa de bar, uma noite de amor, um banho de chuva. Entretanto, falta tempo e eficiência para o desenvolvimento do filme como um todo e principalmente dos personagens secundários, e A Dama do Estácio termina duvidoso, sem afirmar com convicção a necessidade de sua homenagem.

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