quarta-feira, fevereiro 27, 2013

(V Janela Internacional de Cinema do Recife) O Sacrifício - Crítica



Como a humanidade pode sobreviver num mundo dominado e construído através de força, medo, desarmonia e falta de espiritualidade, sob a iminência de um apocalipse nuclear definitivo, uma guerra nuclear sem derrotados ou vitoriosos? A indagação de Andrei Tarkovsky por respostas resultou em O Sacrifício (1986), filme que acabou sendo seu testamento final. Tarkovski busca, desde o princípio de O Sacrifício, uma aproximação com formas de expressão artística ligadas profundamente à fé e à espiritualidade. Os créditos iniciais são marcados em imagem pela Adoração dos Magos de Leonardo da Vinci, uma pintura que retrata o nascimento de Cristo e a visita dos três reis magos a ele, e em som pela Erbarme Dich, trecho da Paixão Segundo São Mateus de Johan Sebastian Bach, um lindo pedido de piedade feito a Deus em forma de música. Em sua despedida do cinema, o diretor exprime sua resposta, e sua crença no poder da fé.

A narrativa é centrada em Alexander, um homem que desistiu da carreira de ator para se tornar jornalista. No dia de seu aniversário, ele é surpreendido com a notícia do início de uma guerra nuclear. Desesperado, Alexander busca ajuda em Deus, e promete a Ele sacrificar tudo que tem em troca da salvação. Alexander também é convencido pelo carteiro Otto a dormir com Maria – que segundo ele é uma feiticeira -, o que acabará com a guerra.

Em meio a tudo isso, o roteiro de Tarkovski acaba apresentando algumas de suas preocupações e ideias em relação a temas como religião, criação artística, espiritualidade e os rumos da civilização moderna, expressas com eloquência em seu livro, Esculpir O Tempo, e em diversas entrevistas ao longo dos anos. O Sacrifício pode não parecer tão abertamente autobiográfico quanto Nostalgia (1983) e principalmente O Espelho (1975), mas há no filme vários elementos que refletem a própria vivência do diretor se refletindo em detalhes que vão desde o corte de cabelo e o figurino de Adelaide – mãe de Alexander -, feitos para deixá-la parecida com a mulher de Tarkovski, Larissa, até a própria organização da família de Alexander e a arquitetura de sua casa.

A esta altura da carreira, Tarkovski parecia não sentir necessidade de seguir qualquer verdade ou qualquer vertente de ideias que não a sua, e não faz nenhuma concessão tanto em relação à estética do filme quanto ao seu conteúdo e o nível de pessoalidade que o impregna. Tarkovski pensava em seus filmes como poesias audiovisuais, obras que exigem um ato de criação tão pessoal quanto o de um escritor, compositor ou pintor. Essa pessoalidade e a maneira como ela é transmitida através da estética é a maior virtude do filme – e dos filmes do diretor como um todo -, mas também pode ser um defeito. Tendo Alexander como seu porta-voz principal, o diretor dá aos diálogos de O Sacrifício um tom mais filosófico do que de costume, dando às conversas um caráter forçado e não natural em certos momentos. Essa tendência dos personagens de filosofar, exprimindo ideias de uma forma mais clara que o necessário, causa certo choque entre a poesia sutil das imagens e a prosa das palavras.

Mesmo assim, permanece intacta a capacidade de Tarkovski de emocionar através de imagens belíssimas e oníricas. Para que isso ocorra, primeiro é preciso que o espectador entre em comunhão com a experiência que o filme proporciona, e principalmente com seu ritmo. Desde a primeira tomada – que dura quase dez minutos – deste que talvez seja o seu filme mais lento, Tarkovski impõe ao espectador um ritmo bem particular, convidando-o a perder a noção de tempo e participar da experiência com um misto de atenção e meditação. De certo modo, esse tipo de experiência se assemelha à visão de um espectador de teatro, onde o contato visual prolongado propicia uma sensação de maior realidade e autenticidade aos atos, apesar das atuações não possuírem uma teatralidade que Tarkovski abominava. Somos levados a adentrar o mundo interior de Alexander, transitando sem cerimônias ou avisos por entre sonho e realidade, ou uma mistura dos dois. A princípio fica clara a distinção entre realidade (cores) e sonho (preto e branco), mas conforme mais e mais cenas monocromáticas vão se seguindo, cada vez mais o mundo real parece se fundir com o dos sonhos, e fica a cargo do espectador decidir sobre o que realmente acontece no filme, já que os sonhos, apesar de possíveis de serem compreendidos, não “explicam” a narrativa. Realmente houve uma guerra nuclear, impedida por Alexander? Alexander realmente dormiu com Maria? Onde começam e onde terminam os sonhos? Quaisquer que sejam as respostas, essa linha tênue entre sonhos e realidade não torna o filme incompreensível. Pelo contrário, só reforça a dimensão onírica e poética de suas imagens, dando aos sonhos uma beleza de um jeito que só os filmes de Tarkovski conseguem.

Esta habilidade do diretor russo de passar para a tela com autenticidade o mundo dos sonhos foi o fator preponderante que levou o diretor sueco Ingmar Bergman a declarar que Tarkovski era o maior (ou mais importante) de todos os diretores. A admiração era mútua, e a influência de Bergman fica mais clara em O Sacrifício que em qualquer outro filme do cineasta russo. As filmagens foram realizadas na Suécia, perto da ilha de Faro, onde Bergman filmou grande parte de seus filmes. A equipe contava com alguns dos colaboradores frequentes de Bergman, com destaque para os atores Alan Edwall (Otto) e Erland Josephson (Alexander) e o diretor de fotografia Sven Nykvist, a quem Tarkovski se referiu como “aquele brilhante mestre da iluminação”. É particularmente notável o trabalho de Nykvist, que lhe rendeu um merecido prêmio especial em Cannes, e proporcionou composições belíssimas, entre elas o escurecer e clarear do quarto do filho de Alexander conforme as cortinas da janela balançam ao vento, o close em chiaroscuro de Maria, chorando em comoção com a estória de Alexander sobre sua mãe, e a visão do apocalipse em preto e branco de alto contraste, só para citar algumas. O Sacríficio também se aproxima de Bergman em sua temática, já que reflexões sobre fé, espiritualidade e a existência de Deus eram frequentes na filmografia do diretor sueco. Dito isso, talvez tenha faltado ao filme, ou mais precisamente ao seu diretor, uma habilidade tão nata quanto a de Bergman para tratar dessas e de outras questões deixando a psicologia de seus personagens fluir mais naturalmente.

Após o término das filmagens e antes que o filme ficasse pronto, Tarkovski foi diagnosticado com câncer de pulmão. Após a notícia, intensificou-se o impacto do filme, que passou a ser interpretado como um testamento final ao cinema, apesar dessa não ter sido a intenção de seu realizador. De fato, a parábola de salvação – tanto física quanto espiritual – através da dádiva do amor de uma mulher – no caso, Maria - e do sacrifício em nome da promessa feita a Deus ganhou ressonância após sua morte, e consegue emocionar profundamente – ainda que um número limitado de espectadores – até hoje. Fechando um ciclo que se iniciou com A Infância de Ivan (1962), que começa justamente com uma criança embaixo de uma árvore - esta já dotada de folhas -, a cena final de O Sacrifício quase torna possível ver o milagre do aparecimento de folhas na árvore seca – símbolo de uma vida renovada pela fé - através da luz brilhante refletida no mar, milagre que só se concretizará através da crença e persistência do filho, que teve sua palavra, fé e amor renovados pelo sacrifício do pai. Tudo pontuado mais uma vez pela música de Bach, dando à cena contornos ainda mais divinos, e uma dedicatória a Andriosha, filho de Tarkovsky que foi separado do pai por anos devido ao seu exílio. Como se o filme não pudesse ficar mais pessoal.

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