Como
a humanidade pode sobreviver num mundo dominado e construído através de força,
medo, desarmonia e falta de espiritualidade, sob a iminência de um apocalipse
nuclear definitivo, uma guerra nuclear sem derrotados ou vitoriosos? A
indagação de Andrei Tarkovsky por respostas resultou em O Sacrifício (1986), filme que acabou sendo seu testamento final. Tarkovski
busca, desde o princípio de O Sacrifício,
uma aproximação com formas de expressão artística ligadas profundamente à fé e
à espiritualidade. Os créditos iniciais são marcados em imagem pela Adoração dos Magos de Leonardo da Vinci,
uma pintura que retrata o nascimento de Cristo e a visita dos três reis magos a
ele, e em som pela Erbarme Dich,
trecho da Paixão Segundo São Mateus
de Johan Sebastian Bach, um lindo pedido de piedade feito a Deus em forma de
música. Em sua despedida do cinema, o diretor exprime sua resposta, e sua
crença no poder da fé.
A
narrativa é centrada em Alexander, um homem que desistiu da carreira de ator para
se tornar jornalista. No dia de seu aniversário, ele é surpreendido com a
notícia do início de uma guerra nuclear. Desesperado, Alexander busca ajuda em
Deus, e promete a Ele sacrificar tudo que tem em troca da salvação. Alexander
também é convencido pelo carteiro Otto a dormir com Maria – que segundo ele é
uma feiticeira -, o que acabará com a guerra.
Em
meio a tudo isso, o roteiro de Tarkovski acaba apresentando algumas de suas
preocupações e ideias em relação a temas como religião, criação artística,
espiritualidade e os rumos da civilização moderna, expressas com eloquência em
seu livro, Esculpir O Tempo, e em
diversas entrevistas ao longo dos anos. O
Sacrifício pode não parecer tão abertamente autobiográfico quanto Nostalgia (1983) e principalmente O Espelho (1975), mas há no filme vários
elementos que refletem a própria vivência do diretor se refletindo em detalhes
que vão desde o corte de cabelo e o figurino de Adelaide – mãe de Alexander -,
feitos para deixá-la parecida com a mulher de Tarkovski, Larissa, até a própria
organização da família de Alexander e a arquitetura de sua casa.
A
esta altura da carreira, Tarkovski parecia não sentir necessidade de seguir
qualquer verdade ou qualquer vertente de ideias que não a sua, e não faz nenhuma
concessão tanto em relação à estética do filme quanto ao seu conteúdo e o nível
de pessoalidade que o impregna. Tarkovski pensava em seus filmes como poesias
audiovisuais, obras que exigem um ato de criação tão pessoal quanto o de um
escritor, compositor ou pintor. Essa pessoalidade e a maneira como ela é
transmitida através da estética é a maior virtude do filme – e dos filmes do
diretor como um todo -, mas também pode ser um defeito. Tendo Alexander como
seu porta-voz principal, o diretor dá aos diálogos de O Sacrifício um tom mais filosófico do que de costume, dando às
conversas um caráter forçado e não natural em certos momentos. Essa tendência
dos personagens de filosofar, exprimindo ideias de uma forma mais clara que o
necessário, causa certo choque entre a poesia sutil das imagens e a prosa das
palavras.
Mesmo
assim, permanece intacta a capacidade de Tarkovski de emocionar através de
imagens belíssimas e oníricas. Para que isso ocorra, primeiro é preciso que o
espectador entre em comunhão com a experiência que o filme proporciona, e principalmente
com seu ritmo. Desde a primeira tomada – que dura quase dez minutos – deste que
talvez seja o seu filme mais lento, Tarkovski impõe ao espectador um ritmo bem
particular, convidando-o a perder a noção de tempo e participar da experiência com
um misto de atenção e meditação. De certo modo, esse tipo de experiência se
assemelha à visão de um espectador de teatro, onde o contato visual prolongado
propicia uma sensação de maior realidade e autenticidade aos atos, apesar das
atuações não possuírem uma teatralidade que Tarkovski abominava. Somos levados
a adentrar o mundo interior de Alexander, transitando sem cerimônias ou avisos por
entre sonho e realidade, ou uma mistura dos dois. A princípio fica clara a
distinção entre realidade (cores) e sonho (preto e branco), mas conforme mais e
mais cenas monocromáticas vão se seguindo, cada vez mais o mundo real parece se
fundir com o dos sonhos, e fica a cargo do espectador decidir sobre o que
realmente acontece no filme, já que os sonhos, apesar de possíveis de serem
compreendidos, não “explicam” a narrativa. Realmente houve uma guerra nuclear,
impedida por Alexander? Alexander realmente dormiu com Maria? Onde começam e
onde terminam os sonhos? Quaisquer que sejam as respostas, essa linha tênue entre
sonhos e realidade não torna o filme incompreensível. Pelo contrário, só
reforça a dimensão onírica e poética de suas imagens, dando aos sonhos uma
beleza de um jeito que só os filmes de Tarkovski conseguem.
Esta
habilidade do diretor russo de passar para a tela com autenticidade o mundo dos
sonhos foi o fator preponderante que levou o diretor sueco Ingmar Bergman a declarar
que Tarkovski era o maior (ou mais importante) de todos os diretores. A
admiração era mútua, e a influência de Bergman fica mais clara em O Sacrifício que em qualquer outro filme
do cineasta russo. As filmagens foram realizadas na Suécia, perto da ilha de
Faro, onde Bergman filmou grande parte de seus filmes. A equipe contava com
alguns dos colaboradores frequentes de Bergman, com destaque para os atores
Alan Edwall (Otto) e Erland Josephson (Alexander) e o diretor de fotografia
Sven Nykvist, a quem Tarkovski se referiu como “aquele brilhante mestre da
iluminação”. É particularmente notável o trabalho de Nykvist, que lhe rendeu um
merecido prêmio especial em Cannes, e proporcionou composições belíssimas,
entre elas o escurecer e clarear do quarto do filho de Alexander conforme as
cortinas da janela balançam ao vento, o close
em chiaroscuro de Maria, chorando em
comoção com a estória de Alexander sobre sua mãe, e a visão do apocalipse em
preto e branco de alto contraste, só para citar algumas. O Sacríficio também se aproxima de Bergman em sua temática, já que
reflexões sobre fé, espiritualidade e a existência de Deus eram frequentes na
filmografia do diretor sueco. Dito isso, talvez tenha faltado ao filme, ou mais
precisamente ao seu diretor, uma habilidade tão nata quanto a de Bergman para
tratar dessas e de outras questões deixando a psicologia de seus personagens
fluir mais naturalmente.
Após
o término das filmagens e antes que o filme ficasse pronto, Tarkovski foi
diagnosticado com câncer de pulmão. Após a notícia, intensificou-se o impacto
do filme, que passou a ser interpretado como um testamento final ao cinema,
apesar dessa não ter sido a intenção de seu realizador. De fato, a parábola de
salvação – tanto física quanto espiritual – através da dádiva do amor de uma
mulher – no caso, Maria - e do sacrifício em nome da promessa feita a Deus
ganhou ressonância após sua morte, e consegue emocionar profundamente – ainda
que um número limitado de espectadores – até hoje. Fechando um ciclo que se
iniciou com A Infância de Ivan
(1962), que começa justamente com uma criança embaixo de uma árvore - esta já
dotada de folhas -, a cena final de O
Sacrifício quase torna possível ver o milagre do aparecimento de folhas na
árvore seca – símbolo de uma vida renovada pela fé - através da luz brilhante
refletida no mar, milagre que só se concretizará através da crença e
persistência do filho, que teve sua palavra, fé e amor renovados pelo
sacrifício do pai. Tudo pontuado mais uma vez pela música de Bach, dando à cena
contornos ainda mais divinos, e uma dedicatória a Andriosha, filho de Tarkovsky
que foi separado do pai por anos devido ao seu exílio. Como se o filme não
pudesse ficar mais pessoal.
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