Começamos
o programa com uma bela tomada aberta da serra que dá título ao filme Serra do Mar (Iris Junges). O som da mata
proporciona uma imersão do espectador naquele ambiente, mas o visual dá uma
ideia de intrusão devido à presença de um casebre no meio da mata, habitado por
um homem solitário. Esta casa só não é mais intrusa que as torres de energia
que estão sendo instaladas na Serra, torres que Jonas tem como trabalho vigiar
através de uma série de câmeras e monitores. Houve um incêndio na mata que
chegou a ser captado por uma câmera, e a busca pela descoberta da causa deste
incêndio obceca Jonas. A alternância entre planos estáticos da mata, além de
sugerir uma vigilância constante, de certa forma equipara o olhar de Jonas –
cercado de computadores, habitando quase uma mini-cidade dentro da mata – com o
das câmeras, iguais em sua incapacidade de realmente penetrar a Serra. Assim
como as câmeras e os cabos de energia que ele tanto guarda, Jonas nunca realmente
fará parte da mata, e, ao se deparar com essa incapacidade, reconhece que sua
tarefa é observar, e só observar. Ao contrário do homem que mora na mata, e o
conflito entre os dois - também um conflito entre um olhar de dentro e um de
fora - é o que dá força ao filme. No fim, a narrativa ainda conserva algum
nível de mistério, como a própria Serra do Mar.
Voltamos
à mata, mas é uma mini-mata dentro da cidade, uma mata que já não guarda
qualquer mistério. Estamos agora no parque do Ibirapuera, no filme Dois (Thiago Ricarte), centrado nos
adolescentes Thalita e Rafael. Adentramos o universo próprio dessa fase da vida
e observamos algumas de suas particularidades, como os estudos na véspera de
prova, a preocupação com as notas, as paixões não-declaradas, coisas típicas
daquela fase em que já não se é mais criança, mas a infância ainda mantém
alguns resquícios, como fica mais evidente em uma fala de Thalita. A narrativa
se desenvolve de maneira até despretensiosa, dando tempo para que os dois
atores – de bom entrosamento – estabeleçam a relação entre seus personagens aos
poucos. A câmera os segue, e entre uma tomada de steadicam e outra pode-se ver
a luz aumentando e diminuindo conforme as nuvens se movem por sobre as árvores
do parque. Rafael parece só se sentir bem perto de Thalita, e fica nervoso
quando ela se distancia, ou quando percebe que o que antes era um estudo a sós
com Thalita se torna um estudo em grupo. Sem dar atenção demais à parte técnica,
Dois retrata de forma espontânea –
difícil de se encontrar quando se mostram adolescentes - a busca de Rafael em
se aproximar de Thalita, apesar de um distanciamento que parece ser natural mas
que não é totalmente compreendido por ele, e de torná-los, enfim, um par.
Também
há um certo distanciamento entre as pessoas-personagens que dão título a Luna e Cinara (Clara Linhart), apesar da
sua natureza não ser clara. A chegada de Clara parece acionar um grau natural
de teatralidade e artificialidade normal de quem se vê de frente a uma câmera. Ao
estarem na presença de uma câmera-testemunha, é como se elas tentassem ao
máximo ter um dia normal, mas melhorado, mais interessante, ou simplesmente
fazer um filme melhor que Laura
(Felipe Adami), dirigido pelo companheiro de Clara. Mas o fato da pessoa por
trás da câmera ser Clara, neta de Luna, muda tudo, dando ao documentário um tom
mais íntimo, caseiro – no melhor sentido possível da palavra. Isso possibilita
um relaxamento maior das duas, que vão brincando e conversando com Clara
enquanto seguem sua rotina de tomar café, ir ver um filme no cinema, ir ao
restaurante. A presença de Clara também é essencial para o momento mais sublime
do filme, quando Luna aproveita a ida de Cinara ao banheiro para fazer uma
confissão que comove o espectador com sua espontaneidade. Luna chora, expressando
sua tristeza por estar sozinha. Clara intercede, lembrando de Cinara,
companheira de todas as horas. Mas por mais que Cinara seja presenteada com
sapatos, bolsas e robes, ela nunca será do mesmo sangue, e para uma mulher que
já teve sua casa habitada por filhos, netos e oito empregados, a solidão parece
natural, inevitável. O que não impede que haja entre as duas uma relação de
amizade, respeito e afeto além da de serventia, e o curta consegue transmitir essa
mistura de sentimentos – principalmente amizade - com sucesso, sendo essa sua
maior virtude. Ao final, o que fica é o abraço de Cinara e Luna, e o olhar
carinhoso e quase inocente das duas mulheres.
Olhos
inocentes – de menina e de boneca - ainda nos acompanham, mas agora estamos num
quarto de menina, e não no Leblon. Quem faz companhia à criança são suas
bonecas, brinquedos, e adereços típicos de um quarto de menina. Nada que pareça
aterrorizante em uma situação normal, mas, desde os créditos iniciais de Menina da Boneca (André Pinto), não há
dúvidas de que estamos vendo tudo aquilo sob a ótica do cinema de horror. Ao
som de uma trilha sonora característica do gênero, um simples ventilador de
teto parece ameaçador, os olhos das bonecas parecem observar entre as sombras,
e acreditamos que talvez, se um close durasse uns segundos a mais, veríamos um
brinquedo sair andando. Tudo para fazer um quarto confortável parecer um
ambiente hostil – de certa maneira justificando o desejo da menina de dormir
com o abajur ligado. É a imaginação - preciosa tanto ao universo infantil
quando ao do cinema de horror - que permeia o filme, interessando a plateia e
dando vida ao corpo de uma boneca. Nos tornamos crianças que, na hora de
dormir, olham por debaixo da cama procurando o bicho-papão – ou algum outro
monstro qualquer -, ao mesmo tempo querendo e não querendo acreditar, olhando
por alguns segundos a mais só para ter certeza. A menina pode até sair do
pequeno espaço de seu quarto – apesar de isso não ser mostrado -, mas fica a
questão: quando ela sairá de seu mundo de sonhos e pesadelos?
Continuamos
num quarto de criança povoado de brinquedos do chão ao teto, mas quando
chegamos a Menino do Cinco (Marcelo
Matos de Oliveira e Wallace Nogueira), parecemos sofrer um choque de realidade.
Enquanto a menina do curta anterior habitava um mundo de sonho (ou pesadelo?), Ricardo
habita um mundo real, às vezes real demais pra ele. Não lhe faltam brinquedos, mas
o relacionamento distante com o pai e a ausência de amigos torna seu
apartamento de classe média quase uma prisão. Téo, outro menino, é livre para
vagar pelas ruas e praças de Salvador, mas não tem teto. Sua única posse é um
filhote de cachorro amarelo, que, por descuido de seus amigos, vai parar
justamente no jardim minúsculo do prédio de Ricardo. Ricardo, ganhando tão
inesperadamente um amigo que tanto lhe faltava, foge para seu refúgio no quinto
andar, ganhando uma válvula de escape da realidade e o amigo que tanto lhe
faltava. Mas o cachorro não pode ser seu, e as tentativas de Téo de recuperar o
cachorro impedem Ricardo de sonhar. Como é singular o mundo à parte em que
vivem as crianças, no qual Ricardo se torna capaz de abdicar de tudo o que tem e
Téo de desejar esse tudo de Ricardo por um simples cachorro. Simples, mas cuja
valorização parece variar entre o tudo e o nada para os personagens conforme a
narrativa se desenrola. O desfecho do curta, totalmente inesperado, só vem a
confirmar que é impossível realmente entender o interior da mente de uma
criança.
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